ENTRE A ARTISTA INTELECTUAL E A COMEDIANTE POPULAR
Marisa Orth é a homenageada da CineOP em 2025. A distinção ocorre em uma edição na qual a temática histórica é o humor das mulheres diante e atrás das câmeras no cinema e no audiovisual brasileiros. Nesse segmento cultural, a atriz está entre os principais e mais polivalentes talentos de nossas expressões cênicas. Do cômico ao dramático, Marisa interpreta músicas em shows e personagens em musicais, atua em novelas, programas seriados, dublagens para animações, filmes, peças de teatro e, até mesmo, como sex symbol, alcunha cravada em um ensaio fotográfico de corpo nu, em 1997, realizando o sonho de ter sido a garota do pôster. Mulher alta, forte, de voz grave e ironia ligeira, como é da natureza da ironia, Marisa já disse em entrevista que, hoje, com a proliferação de mulheres no humor, pede licença para entrar em cena. Foi-se o tempo em que o riso era, como tantas outras coisas, um privilégio masculino, com raros destaques e protagonismos femininos, não apenas no Brasil.

A libriana de ascendência germânica-calabresa, mais calabresa que germânica, já foi consagrada nessas votações de maiores da comédia. Magda Salão Antibes, sua mais famosa personagem, uma mulher infantil e ninfomaníaca no sitcom/teleteatro Sai de Baixo (idealizada por Luís Gustavo a partir da Família Trapo), foi escolhida a personagem mais engraçada do humor brasileiro. A votação do Top Business Brasil, em 2006, lhe rendeu 1,5 milhão de votos (15% do total). Magda, nas palavras de Marisa, é burra e submissa, começou o programa “tonta e terminou ameba”. Mas, para além de seu desgaste durante as sete temporadas, marcadas por brigas e improvisos de toda ordem, além de trocas no elenco ao longo dos 231 episódios (a maioria gravada com plateia no teatro Procópio Ferreira), Marisa entende Magda como uma representação crítica, e não um elogio a essa mulher obtusa. Ainda assim, apesar das limitações, Magda a impulsionou de várias formas. Foi graças ao sex appeal da personagem, considerada por Marisa mais bonita e orgástica do que ela própria, que a atriz posou nua. Fora da ficção, as fronteiras entre arte e artista sempre se turvaram: não foram poucas as ocasiões em que Marisa foi chamada de Magda. Não por acaso o seu receio de nunca mais se livrar dela.
Magda apareceu em 31 de março de 1996, ainda sem muito esplendor diante da intensidade performática de colegas de elenco, como Claudia Jimenez, Aracy Balabanian, Miguel Falabella, Tom Cavalcante e Luiz Gustavo. Contudo, já apresentava suas marcas registradas, como o cabelo jogado de um lado para outro, de frente para trás, e a modulação repentina da voz, do grave para o agudo. Ciente dos preconceitos contidos nas piadas, em descompasso com uma comicidade contemporânea mais politizada, a plataforma Globoplay colocou uma mensagem de alerta antes dos episódios, chamando atenção para as representações negativas e estereótipos da época – que levaram, por exemplo, à demissão de Claudia Jimenez por conta de referências negativas à obesidade direcionadas à sua personagem diarista. No último episódio, quando Marisa/Magda entra na sala do apartamento, é recebida com assobios em reação às suas formas e ao vestido curto, antes do coro puxado por Falabella: “Poxa, que coxa”. Quem se banha no humor também cultiva as manchas dos incômodos.
No entanto, Marisa nem sempre foi a síntese máxima do divertimento ou da fama. Até chegar à pele da ambiciosa e emergente Nicinha, na novela A Rainha da Sucata (1990), na Rede Globo, que lhe rendeu Prêmio APCA (Associação Paulista de Críticos de Arte) de Atriz Revelação em televisão, Marisa era uma atriz cult, de teatro e música independentes, com um pé na experimentação e a voz nas vanguardas, seguindo a tradição paulistana da quebra de paradigmas nos anos 70/80. Formada em Psicologia pela PUC-SP e pela Escola de Artes Dramáticas (EAD) na USP, foi criada em uma família de elite com interesses na cultura. Marisa veio do alto e, para se tornar a estrela das últimas décadas, baixou a bola. Teve de limpar o preconceito com o humor popular. Em entrevista sobre seu início profissional, disse que foi criada para ser uma paulistana cinzenta e intelectual, para “só fazer coisas chiques”. Sofreu muitas críticas quando começou a se tornar engraçada em seus trabalhos.
E nem tudo foi só graça. Marisa é da linhagem das atrizes brasileiras que transitam por diferentes meios expressivos com a mesma desenvoltura, respondendo às distintas exigências de um palco, de um estúdio e de um set. Como cantora ou com personagens de ficção, algumas pensadas para o humor e outras não, Marisa sempre oscila entre a contenção e a intensidade, entre um minimalismo controlado e sua explosão. Em cada uma dessas presenças, ela imprime sua marca de atriz autoral, com um tom frequente de autoparódia cínica, aparentemente calculado, sem deixar de parecer espontâneo e improvisado. No teatro, começou na primeira metade dos anos 80, no grupo Vento Forte, ao que se seguiu, na segunda metade da década, sua presença no grupo musical-performático Luni e seu primeiro êxito de público no teatro, em 1988, como a Laura de Fica Comigo Esta Noite, de Flávio de Souza. Um ano antes, teve sua primeira incursão no cinema com o curta A Mulher Fatal Encontra o Homem Ideal, de Carla Camurati. Em 1990, estreou no longa-metragem com Não Quero Falar sobre Agora, de Mauro Farias, também estrelado por Evandro Mesquita e Eliana Fonseca, no mesmo ano de sua estreia na televisão. A segunda metade dos anos 80 deu uma acelerada em seu percurso.
Talvez o ingresso na Rede Globo, em um momento de baixa de produção e de prestígio do cinema brasileiro, tenha afastado a atriz das telas maiores, ao menos em frequência e protagonismo. Seu único papel central foi em Doces Poderes, de Lúcia Murat, em 1997. Fora de um regime de humor, Maria vive uma jornalista às voltas com investigações políticas em Brasília. Mesmo sem protagonismo, são também importantes suas presenças em Durval Discos, de Anna Muylaert, em 2002, em Os Normais, o filme derivado da série homônima, em 2003, e em Como Fazer um Filme de Amor (2004), de José Roberto Torero. A segunda metade dos anos 90 e a primeira década dos anos 2000 foram seus melhores anos no cinema. Marisa voltou a ser dirigida por Lúcia Murat em Maré, nossa História de Amor, em 2008, como uma professora de dança (uma de suas formações), e por Anna Muylaert em É Proibido Fumar, em 2009. Em 2019, voltou ao papel de Magda para a versão cinematográfica do seriado cômico Sai de Baixo, dirigida por outra mulher, Cris D’Amato. Na música, além do trabalho com a banda Luni, nos anos 80, esteve à frente da banda Vexame, entre 1989 e 1998, depois com algumas reaparições nos anos seguintes, com repertório de música brega, interpretadas de modo exagerado, excessivo e burlesco.

A medida de Marisa é elástica e vai dos curtas-metragens a um cinema independente autoral, dos grupos musicais vinculados ao melhor da cena independente de música experimentadora em São Paulo aos musicais cênicos na linha Broadway brasileira, mais retumbantes e midiáticos (como A Família Adams e Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos); vai de comicidades mais grosseiras na televisão a um filme de tintas políticas como Doces Poderes. Versatilidade é pouco. Consequentemente, para quem se nutriu, no teatro, de Blanche Dubois a Simone de Beauvoir, na televisão, de Magda a Nicinha e, na música, de bandas como Luni e Vexame, tudo pode esperar-se de Marisa. Sempre foi assim. Não parece que será diferente.
Cleber Eduardo
Curador
Juliana Gusman
Curadora Assistente