CINEMA E EDUCAÇÃO DIGITAL: DESLOCAMENTOS
“Uma das coisas mais lastimáveis para um ser humano é ele não pertencer ao seu tempo.
E se sentir assim, um exilado do seu tempo.“
Paulo Freire, 1983/2021
Há 60 anos atrás, no início do projeto de alfabetização de pessoas adultas em Angicos (RN), Paulo Freire fazia uma aposta na cultura dessas pessoas, visando sobretudo o respeito e a libertação dos oprimidos. Quando mais de vinte anos depois ele se surpreendeu com a TV e com o poder dos chamadosmassmidia, de maneira geral, publicou o livro Educar com a Mídia. O primeiro alerta que ele nos fez nessa publicação é o problema de não pertencer ao nosso próprio tempo. Não ser exilado do nosso tempo significava também um chamado de atenção para o problema que trazia atrelado:
[…] quem tem o poder sobre os meios de produção? Até que ponto um meio deste, a televisão, por exemplo, constitui uma rede monopolista? Enquanto monopólio de um certo grupo de força, de poder, o risco que você tem, que a sociedade inteira tem, é o de ficar manipulada pelos interesses de quem detém o poder sobre esse meio de comunicação”. (FREIRE, 1983/2021, p. 36-37)
A proposta da Temática Educação deste ano dialoga com essa reflexão. Pretendemos problematizar as relações entre cinema e educação digital, avaliando as potências e os riscos de ver, produzir e compartilhar audiovisual no contexto de uma educação que é simultaneamente analógica e digital nos dias de hoje. Se fizermos o exercício de substituir “a televisão, por exemplo” por “as redes sociais ou a inteligência artificial, por exemplo” na fala de Paulo Freire, descobriremos a atualidade dessa reflexão.
Produzir colaborativamente conhecimento por meio de imagens e sons nas escolas e outras instituições educativas significa ampliar as oportunidades de acesso às informações, assim como de aproximação das práticas culturais dos jovens e de suas expressividades. Ensinar e aprender nas escolas e outras instituições educativas hoje permite ampliar as possibilidades de habitar ambientes em realidade virtual, mista ou aumentada, em outros espaços e outros tempos; de navegar por dentro do corpo humano conhecendo de perto os processos da concepção da vida; de nadar perto de tartarugas marinhas percebendo a biodiversidade das águas na Ilha Grande; de visitar o Museu Antropológico da Cidade do México; e até mesmo de navegar pela Via Láctea, de constelação em constelação, identificando como ela é pequena em relação ao cosmos.
Mas, atravessar processos pedagógicos na educação digital significa ainda habitar uma imensa vulnerabilidade do ponto de vista da privacidade dos dados e da soberania digital. Produzir e compartilhar conteúdo audiovisual nos dispositivos móveis de comunicação, nos coloca em situações de verdadeiro risco, pela fragilidade das leis sobre a privacidade dos nossos dados e ainda da soberania digital.
Esta é uma discussão necessária, mas também urgente para toda a sociedade. Ela exige debates e o questionamento acerca dos direitos e deveres dos grandes conglomerados em relação ao uso e venda dos nossos dados. Fundamentalmente diante da instalação massiva nas escolas a partir da iminente regulamentação do Plano Nacional de Educação Digital (Lei 14.533/23).
A inclusão digital é um direito e, de fato, um passo importante rumo à cidadania. Mas, o cuidado precisa se tornar também uma política pública rigorosa e evitar automatismos de submissão do humano aos caprichos bem disfarçados do capitalismo de vigilância e da informação que em ritmos de 24 horas por 7 dias por semana disputam nossa atenção, predizendo, capturando e produzindo o nosso desejo. É uma crença irresponsável imaginar que podemos estar conectados de forma permanente sem devastar de modo irrecuperável a energia do planeta (CRARY, 2023). A educação precisa garantir, fundamentalmente na escola, espaços e tempos para o digital e o analógico.
Com isso iremos propor aproximações a diferentes práticas pedagógicas e cinematográficas que podem nos oferecer a chance de pensar de forma ampla e aprofundada as implicações estéticas, éticas e políticas da presença do cinema como uma forma de educação digital. A Mostra de Cinema de Ouro Preto será, portanto, um fórum para buscar respostas a diversas perguntas sobre: Algoritmos; Metaverso; Realidade Aumentada; Realidade Mista; Inteligência Artificial; e Conversas com ChatGPT. E ainda formular muitas outras.