CARTOGRAFAR O HUMOR, EXPANDIR O RISO
Há exatos 30 anos, Dercy Gonçalves, matriarca do escárnio no Brasil, respondia à atriz Iara Jamra, em entrevista ao programa Roda Viva, que os homens têm desprezo pela mulher cômica. Ela, que os escornava de volta, amassou o pão que o diabo comeu, mas cravou, resoluta, seu lugar na cultura popular. Não que outros caminhos teriam sido fáceis. A comédia, historicamente, é um reduto masculinizado, mas também um dos poucos que afrouxaram – não por piedade, é claro – as normas que impedem que certas atrizes ocupem (ou adornem) as telas. Nos insólitos terrenos do humor, a beleza perde sua validade absoluta. Dercy, inclusive, consagrou-se apenas nos anos 1960 como uma artista já madura, quando a inadequação de seu comportamento, explosivo, impulsivo e desobediente, começava a confluir com a suposta inadequação de seu corpo envelhecido.
Muitas vezes, a comicidade vem, de fato, da desordem, do impuro, do que é considerado grotesco. Há de se negociar, astutamente, com essa possibilidade de aparição. Outras atrizes, herdeiras de Dercy, souberam manipular o inconstante jogo do riso a seu favor. Mas há outros tipos de repulsa com os quais é preciso lidar. Afinal, há desvios de outra ordem quando a mulher cômica gargalha atrás das câmeras.
Ao tomar “o humor das mulheres no audiovisual brasileiro” como motor da Temática Histórica da 20º Cineop, não nos limitamos a pensá-las como imagem. Quem são as mulheres que, do antecampo, manejam a linguagem cinematográfica em nome da ironia fina ou da bufonaria, do chiste ou do gracejo? Inventariar a autoria feminina nas comédias nacionais, sobretudo no que diz respeito à direção, implica driblar apagamentos persistentes e longevos. Implica também fracassar em alguma medida.
Há alguns desafios postos. Em geral, é escassa a bibliografia sobre o cinema de comédia no Brasil, apesar de sua notável popularidade entre as audiências. Encontramos, evidentemente, reflexões sobre as chanchadas realizadas nos anos 1940 e 1950, sobretudo a partir da atuação da produtora carioca Atlântida Cinematográfica. Destacam-se, ainda, esforços como o da professora Sheila Schvarzman, que desenvolve uma pesquisa substantiva sobre o cinema brasileiro contemporâneo comercial de grande orçamento. Mas seria possível pensar em uma (contra)história da comédia brasileira no cinema para além desses dois eixos nos quais recaem as nossas principais disposições investigativas? O que um deslocamento político das atenções poderia revelar sobre as possibilidade expressivas do humor na nossa cultura audiovisual?
Dito isto, a tentativa de extrapolar esses dois marcos, incorporando à nossa precária, mas obstinada cartografia, manifestações fílmicas marginais, em termos estéticos ou de público, nos coloca diante da difícil delimitação de um campo. As comédias, em sua acepção clássica, são narrativas ancoradas na apresentação e resolução do erro. Em sua estrutura, calamidades e equívocos são disparados e, então, contornados de modo triunfal. O cômico depende do desvio e do contratempo, sobrelevando, a partir de suas necessárias superações, a infinita capacidade humana de seguir em frente. Para além dessa definição ampla, no cinema brasileiro, este “descarrilamento” do sentido e da ordem ramifica-se em várias tendências: na comédia musical, na comédia erótica, na tragicomédia, na comédia romântica e nas adaptações de sitcons televisivos, sem nos esquecermos de produções mais autorais (e talvez mais raras) que assumem a comédia, principalmente, como ferramenta de crítica social. Além disso, o bom humor contamina outros registros cinematográficos, descarrilhando, também, classificações ao fim e ao cabo imprecisas.
Não é sem hesitações que localizamos um certo pioneirismo em Tereza Trautman. Os homens que eu tive (1973) não é propriamente uma comédia, mas a qualidade absurda desta obra – cuja protagonista, vivida por Darlene Glória, explora seus desejos muito livremente em um casamento aberto – instaura um tom disruptivo e debochado que seria maturado pela diretora e radicalizado pela contemporânea Ana Carolina. Com Mar de Rosas (1977), ela inaugura sua onírica, satírica e burlesca Trilogia da Mulher – alinhavada por Das Tripas Coração (1982) e Sonho de Valsa (1987). Uma geração seguinte, que desponta com a produção curtametragista nos anos 1980, aumentaria a temperatura e dobraria a aposta. Algumas diretoras – como Carla Camurati, Eliana Fonseca, Betse de Paula, Alice de Andrade, Anna Muylaert e Rosane Svartman – fariam suas primeiras incursões no humor, experimentando arranjos que seriam vistos em seus trabalhos posteriores em longa-metragem, numa transição efetuada a partir do final dos anos 1990 e da virada para os anos 2000. Neste contexto, somariam-se a elas realizadoras como Sandra Werneck e Mara Mourão, que, vindas de outros espaços de atuação, se imiscuiram na comédia com os longas Pequeno Dicionário Amoroso (1997) e Alô? (1998), respectivamente.
A partir de 2013, há uma perceptível virada de chave. Com o lançamento de Meu passado me condena, de Julia Rezende, e, no ano seguinte, de S.O.S Mulheres ao Mar, de Chris D’Amato, instaura-se uma certa hegemonia feminina na comédia popular de grande público. Junto com Susana Garcia, essas realizadoras estariam à frente de alguns dos maiores sucessos de bilheterias do país, feito alcançado anteriormente, no contexto do gênero cinematográfico em foco, apenas por Carla Camurati, com seu singular Carlota Joaquina, Princesa do Brazil (1995). Contudo, observamos uma pulsante produção, novamente em curta-metragem, que rói as beiradas do humor contemporâneo. É neste território inventivo que uma mulheridade menos branca, menos burguesa, menos cisheterocentrada tem mostrado, como diria a ensaísta francesa Hèléne Cixous, que tem “olhos e ouvidos na ponta da língua”. Esses filmes, que circulam majoritária e dispersamente nos circuitos de mostras e festivais, revelam que quando se multiplicam os corpos, multiplica-se percepções de hilaridade.
O levantamento que apresentamos, logo, não se pretende exaustivo ou definitivo. Esboçamos, aqui, um mapa provisório de obras, dirigidas e protagonizadas por mulheres (e por pessoas que também desafiam delimitações dessa categoria identitária), que conduziram processos e reflexões curatoriais que, longe de propor soluções para a difícil (e mesmo indesejada) demarcação de um “humor feminino”, almejaram expandir tanto o “humor”, quanto o “feminino”, em seus limites.
Cleber Eduardo
Curador
Juliana Gusman
Curadora Assistente