RETRATOS, PAISAGENS E ARQUIVOS DE FAMÍLIA
Os curtas da Mostra Contemporânea da 20ª edição da CineOP contemplam documentários que revisitam a paisagem de centros urbanos e as transformações ao longo do tempo, filmes que lançam olhares críticos para a forma como a história oficial foi narrada e registrada e ensaios com arquivos domésticos que recuperam o passado e até buscam flertar com as estratégias da autoficção.
A primeira sessão é composta por um conjunto de filmes instigados pela forma como são feitas as alterações dos espaços urbanos e como diferentes interferências públicas e privadas definem a configuração da paisagem. A sessão inicia com Suá, a Praia que Sumiu, dirigido por Thais Helena Leite. O documentário capixaba desconstrói a narrativa oficial de exaltação do progresso em torno do aterramento de uma praia, em Vitória, nos anos 1970, com forte presença de pescadores guardiões de manifestações culturais tradicionais. Dirigido por Fábio Rogério, o paulista Este Cinema Tão Augusta registra o funcionamento de um cinema de rua no Centro da cidade de São Paulo na iminência de fechar as portas por conta da especulação imobiliária.
O documentário paraibano A Nave que Nunca Pousa, dirigido por Ellen Morais, é um ensaio que flerta com a ficção científica ao observar o cotidiano de uma comunidade quilombola no Sertão da Paraíba que sofre as consequências da instalação de usinas eólicas. A sessão encerra com o curta ensaístico carioca Afluente, que faz parte da pesquisa de doutorado do realizador Fred Benevides, na Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Montado com diferentes materiais, como fotos, cinejornais em película, registros contemporâneos em 16mm, Super-8 e em formatos digitais, o curta reinterpreta o processo de eletrificação das águas do Rio São Francisco, a partir de um olhar crítico para o arquivo fílmico disponível sobre o assunto.
Os planos fixos que revelam diferentes espaços de uma escola abandonada no interior de Santa Catarina costuram o documentário O que Fica, com direção de Daniel Edu Mayer e Fabiane Bardemaker Batista, e que abre a segunda sessão. Restauradas pelo Laboratório Universitário de Preservação Audiovisual (Lupa) da Universidade Federal Fluminense (UFF), raras imagens de Luís Carlos Prestes e sua eleição como senador pelo Partido Comunista Brasileiro (PCB) compõem Um Breve Respiro Democrático, dirigido por Rafael de Luna Freire, do Rio de Janeiro. O documentário paulista Memórias da Desindustrialização, realizado por Vivian Castro Villarroel, faz referência ao período de declínio do setor industrial na América Latina, lançando mão do uso de materiais fílmicos registrados em antigas fábricas têxteis do Brasil e do Chile.
Do Ceará, os realizadores Samuel Brasileiro e Natália Maia dirigem o documentário Fortaleza Liberta, que narra a história do quadro homônimo, guardado no Museu do Ceará, em Fortaleza, e de suas controversas leituras da representação do dia da abolição da escravatura, em 1883. A sessão encerra com A Carta de Mudan e as Oito Primaveras, um singelo retrato de uma jovem chinesa, do grupo étnico Xibe, em Xinjiang, e sua família, cuja trajetória é acompanhada pelo realizador Pedro Nishi ao longo de oito anos.
A terceira sessão é focada em filmes atravessados por memórias partilhadas, sejam individuais ou coletivas. O documentário carioca Mandinga de Gorila, dirigido por Luzé e Juliana Gonçalves, abre a sessão com um repertório memorialístico em torno dos gorilas de saco, que tradicionalmente se consolidaram como uma alternativa mais acessível para a comunidade da Vila Vintém participar do Carnaval no Rio de Janeiro. Inspirado no emblemático filme estrutural Hapax Legomena: Nostalgia (1971), do estadunidense Hollis Frampton, o ensaio mineiro Homage to Hollis Frampton (or Thiago), de Pedro Kalil, experimenta uma elaboração da memória a partir da destruição lenta de uma imagem fotográfica, aliada à exploração de ruídos e vozes.
O encontro com vídeos guardados desencadeia lembranças de um amor perdido no curta paulista Natureza Morta, de Diran Serafim. A sessão finaliza com o carioca Zizi (ou Oração da Jaca Fabulosa), de Felipe Bragança, que recupera a história da avó do diretor do filme, em Queimados, na Baixada Fluminense. Estratégias de fabulação e imaginação borram os limites entre documentário e ficção.
Camila Vieira
Curadora