O Trabalho em Cena

Ouro Preto tem uma conexão histórica com o cinema brasileiro e internacional. Foi cenário, tema e contexto de tantos filmes. Sua geografia montanhosa, em convivência com o museu a céu aberto de arquitetura colonial/escravocrata, tem atraído muitas lentes, nem todas conscientes dos violentos processos de extração de pedras das minas locais, com mão de obra escravizada, durante a exploração das colônias latino-americanas pelas metrópoles portuguesas e espanholas. 

A cidade também é parte do cinema como origem do diretor João Dumans e da produtora Laura Godoy, núcleo central do documentário As Linhas da minha Mão, atração da Mostra Valores, dedicada a trabalhos cinematográficos realizados por pessoas nascidas em Ouro Preto. O filme ganhou em janeiro deste ano a Mostra Aurora na 26ª Mostra de Cinema de Tiradentes, composta por filmes dirigidos por quem está no máximo em seu terceiro longa-metragem. 

João Dumans tem um longa anterior, Arábia, dirigido em parceria com Affonso Uchoa, do qual Laura Godoy também participou como diretora de produção. Arábia teve parte de suas filmagens ambientadas em Ouro Preto. É um filme construído pelas relações entre os personagens e seus espaços de vivência, de trabalho em primeiro lugar. O trabalho, agora de um diferente ângulo e sem se tornar um tema, retorna. 

As Linhas da minha Mão, diferentemente de Arábia, cria um espaço mental (mais que físico), porém, coincidentemente ou não (com Arábia), esse espaço mental é também espaço de vivência e de trabalho –atuação, performance –de sua atriz, Viviane de Cassia Ferreira, protagonista quase solo, apesar de quase sempre estar em relação com alguém no interior das cenas/atos, mas se relacionando nessas cenas, principalmente, consigo mesma e com a câmera, sem necessariamente olhar para a lente ou evidenciar sua presença. 

É uma atriz em trabalho, mais que em exposição. Fala inicialmente a partir da filosofia (Nietzsche), sobre elaboração de uma performance, narra episódios extraordinários de sofrimento com sua depressão e de prazer com um encontro fortuito em uma viagem, reflete sobre a vida com apropriação da música e da poesia como modo de se expressar e de compartilhar seus sentimentos.

Pequena produção em termos materiais, o filme usa a seu favor esse pequeno tamanho para criar um espaço de intimidade performática. Desvia-se das noções de personagens representativos de alguns documentários contemporâneos, que, por colocarem a funcionalidade dos personagens acima de suas energias singulares, fazem das pessoas mais confirmações do que descobertas. A atriz e personagem Viviane, também parceira de criação das cenas, é antes de tudo Viviane, uma atriz com depressão atuando em um filme sobre si mesma. 

É só isso e, sendo só isso, abolindo as linhas invisíveis que separam a atriz da personagem, sua vida da performance, é muita coisa.

Cleber Eduardo
Coordenador curatorial da Mostra Contemporânea e curador da Temática Histórica