Música Preta no Brasil: tradições e transitoriedades
Em vários momentos de Uma Nega Chamada Tereza (1973), de Fernando Coni Campos, Jorge Ben aparece em cena como Jorge Ben, sem que interprete seu personagem. Basta ao filme, apenas, que ele esteja na imagem com seu corpo, com seu olhar e com seu sorriso, como ilustração de Jorge Ben, dispensando os diálogos (a maioria banais ou boçais) e substituindo-os pelas letras e pelas harmonias de suas canções, perfiladas tais quais fossem –e talvez sejam –o fio condutor dos fotogramas de organização dispersa. Uma Nega Chamada Tereza (1973) é, possivelmente, entre todos os filmes programados para o segmento histórico da CineOP, o de exibição e conhecimento mais raro. Há pouco material escrito sobre o filme, mesmo em seu ano de lançamento. Não é uma das obras mais celebradas de seu importante diretor, Fernando Coni Campos, e também não está colado diretamente à imagem de Jorge Ben Jor. É, aliás, desconhecido até aos seus fãs mais aplicados e, também por isso, a digitalização de sua cópia e sua exibição nao CineOP podem ser a abertura de um túnel do tempo para o filme, reverberando situações pouco abordadas tanto na carreira do cineasta como do músico carioca. Afinal, não se trata de recolocar o filme em circulação, mas de apresentá-lo como se fosse ainda inédito, abrindo uma fenda de percepções outrora cerrada tanto no campo do cinema brasileiro como na análise da participação de artistas da música preta no Brasil à frente das câmeras.
Uma Nega Chamada Tereza é algo próximo a um filme-álbum, com sequências que mudam como se passassem pelas faixas de um disco. É como se o longa-metragem se assemelhasse a um LP, com seus cortes e fragmentações mais evidentes e enfáticos do que as intenções de continuidade, com uma narrativa mais mencionada em alguns diálogos do que de fato viabilizada na estrutura cena a cena. Esses elementos, por sinal, estão evidenciados na montagem, assinada por Renato Neumann, que exala a liberdade de conexões e desconexões dos cinemas modernos em ebulição nos anos 60 em vários países e ainda em reverberação na década seguinte. As cartelas coloridas, por exemplo, alertam os personagens. Não são apenas informativos. Agem como um coro. Comentam. Ou seja, não há organização como na trama da trilogia estrelada por Roberto Cantos entre 1968 e 1970 –aqui, o modelo empregado é traído por Uma Nega Chamada Tereza, com sua cacofonia visual e rítmica, passível de ser apresentada alguns anos antes em algum filme da Bel Air (mais de Sganzerla que de Bressane).
O filme de Coni Campos é, antes de tudo, muito mais um filme com a estética de seus anos em relação a um astro negro da música do que um filme de autor ou de uma filiação cinéfila. Roberto Carlos e Simonal são citados como participantes de uma corrida na qual querem a presença de Jorge Ben. Um pandemônio. A irreverência é o que guia o tom, esbarra e atola na caricatura, tira onda com o próprio Jorge Ben e com sua fama de mulherengo. Um playboypreto da música. A política identitária e afirmativa percorre o filme em zigue-zague e curvas derrapantes. Antônio Pitanga, por exemplo, é o africano em expedição para estudar a situação dos negros brasileiros. Decide focar seu interesse em Jorge Ben, embora o ache pouco politizado com a questão dos negros. Há uma situação paralela com um jovem parecido com o cantor, sequestrado para ficar em seu lugar. Pepita Rodrigues é a líder dessa gangue.
Tudo isso que semeia o filme de 1973, arquivado por 50 anos, é parte de uma memória a ser constantemente cultivada e posta ao público, e não somente descoberta e mantida fora das telas e das trocas. Da mesma forma como são de diferentes maneiras os outros 20 filmes que, entre curtas e longas, em sessões presenciais e online, respiram a música preta (no Brasil). O mais longevo deles é de 1955 (Brasilianas –Cantos de Trabalho –Música Folclórica Brasileira, de Humberto Mauro), enquanto o mais recente é de 2023 (Baile Soul,deCavi Borges), programado para a sessão de abertura e também parte do contexto à homenagem a Tony Tornado. Entre esses quase 70 anos de distância que perpassam os dois documentários, há também uma espécie de atitude complementar na lida com a música. Um a encara como suavizante no duro trabalho de corpos negros em serviços manuais/braçais na zona rural (“Tanta gente para comer, só eu para socar”, canta em lamento uma jovem enquanto trabalha). O outro enfoca a música como celebração e afirmação de uma atitude, identidade e vivência pretas no subúrbio carioca, deixando os ecos da escravidão de lado para se aliar com o que há de mais novo, político e pulsante em matéria de cultura negra nos EUA. Ambos, no entanto, compõem uma comunidade: a do trabalho e a da dança. Não são apenas os filmes que são diferentes entre si. Há outras visões em jogo lá e cá nesses 70 anos de distância que a Temática Histórica da CineOP aprofunda, questiona e difunde.
Entre os cantos dos trabalhos e o dos bailes, programamos um passeio pelas décadas, pelos estilos, pelos personagens, pelas contingências e pelas sonoridades pretas. Há outro filme dos anos 50 (Rio Zona Norte, de Nelson Pereira dos Santos), inspirado em e por Zé Ketti, numa história familiar de roubo de samba. Um é dos anos 60 (Nelson Cavaquinho, de Leon Hirszman), retrato em ação de um dos maiores do samba, sem nunca deixar de lado um astuto dialogismo entre as condições carnais, sociais e geográficas que rondam os artistas do Brasil. Dois são dos 70 (o já citado Uma Nega Chamada Tereza, de Fernando Coni Campos, e a obra-prima Alma no Olho, de Zózimo Bulbul), talvez os filmes mais abusados em relação à forma e muito distintos em relação às suas atitudes na elaboração da imagem política de corpos negros. Se o filme de Coni Campos conversa com o pastiche e com a alegoria, o curta-metragem de Zózimo nos reverbera o trauma, o transe, e põe-se em jogo com as abstrações abruptas na imagem. No campo da metáfora e dos sonhos, as duas lendas negras da cultura brasileira apresentam suas armas e seus sorrisos.
A programação também traz três filmes realizados nos anos 1980 (Aniceto do Império em Dia de Alforria, de Zózimo Bulbul, Partido Alto, de Leon Hirszman, Tim Maia, de Flávio Tambellini), que transitam pelas raízes musicais dos morros cariocas e chegam a uma carioquice mais influenciada conscientemente pela musicalidade de fora do país. No caso de Hirszman, a geografia é importante, pois a câmera ronda, roda, rodopia e evacua os ritmos sonoros, dá vazão ao popular e ao burlesco, constrói também a história. Já no curta-metragem de Tambelini há não apenas a memória em jogo, como existe também uma condição trágica latente, um riso engasgado e nervoso em cada uma das quase sketchesque as sequências com Tim Maia oferecem. Se hoje a CineOP homenageia Tony Tornado, pelos seus 93 anos dedicados à arte e à cultura preta do Brasil, é porque muito de suas influências e reverberações pode também serencontradono contato com esses filmes e seus protagonistas –a lembrar da passagem pelos Estados Unidos, em que Tornado e Tim Maia (ainda Sebastião) tornaram-se companheiros.
Por fim, há dois filmes dos 90 (Nelson Sargento, de Estevão Ciavata, e A Voz e o Vazio: A Vez de Vassourinha, de Carlos Adriano), que anunciam não apenas duas vertentes e duas épocas do samba, mas também complexificam e esmiuçam as possibilidades cinematográficas do retrato. O primeiro, com uma ágil articulação composta por imagens vivas, filosofando ideias no corpo a corpo com o sambista carioca. Enquanto o segundo traz a ideia de sonoridade, a partir de um ícone menos conhecido, o lendário sambista paulistano Vassourinha, morto aos 19 anos em 1942 no auge de sua revelação. Num jogo estridente de montagem, Carlos Adriano nos alerta ao esquecimento, mas faz questão de salvaguardar a memória do jovem músico por meio de um filme-elegia, cuja sequência final é habilmente filmada pelas lentes de Carlos Reichenbach.
Assim, a segunda metade do século XX projetada nesses filmes transita por artistas célebres do samba e de suas vizinhanças rítmicas, indo da música de pilantragem e da soul music brasileira até as experimentações sonoras: Vassourinha, Zé Keti, Aniceto, Nelson Cavaquinho, Nelson Sargento, Tim Maia, Jorge Ben.
Nos quase 70 anos que separam o mais antigo do mais recente filme da Temática Histórica, há ainda oito filmes do século XXI presentes, que trafegam não somente pelo samba como pelos ritmos musicais mais contemporâneos, exibindo realidades e situações de vida por meiode um contato direto com o fazer artístico. Gurufim na Mangueira (2000), de Danddara, abarca o humor sobrenatural da comédia no contexto do samba, enquanto Paulinho da Viola – Meu Tempo É Hoje (2003), de Izabel Jaguaribe, evoca a personalidade, o pensamento e a criação do artista carioca, explorando seus campos íntimos de sensibilidade pela voz suave e gentil do Baluarte da Portela.
Já a cultura, o comportamento e as coreografias no funk carioca de morro estão presentes no longa-metragem Sou Feia Mas Tô na Moda (2005), de Denise Garcia, ao passo que a fenomenal popularidade e as controvérsias em torno de Simonal são apresentadas em Simonal –Ninguém Sabe o Duro que Dei (2008), de Calvito Leal, Cláudio Manoel e Micael Lange. E, se o século XXI incrementa as múltiplas reverberações musicais nesta edição da CineOP, o punk longevo de Clemente Rodrigues ganha vez com a exibição de Inocentes –30 Anos (2011), deCarol Thomé, ao mesmo tempo que o rap e a cultura hip-hop praticada por mulheres resistentes e persistentes tomam forma no curta-metragem As Mina do Rap (2015), de Juliana Vicente. Além disso, há também a presença das performances femininas em espaços públicos do Rio de Janeiro em um ritual percussivo transtemporal com Elekô(2015), do Coletivo Mulheres de Pedra, enquanto as lendas e bastidores da soul music carioca e dos bailes periféricos estão em Trem do Soul (2021), de Clementino Jr. Ao cabo da programação, por sua vez, temos o percurso, os êxitos e as perdas de Lupicínio Rodrigues em Lupicínio Rodrigues –Confissões de um Sofredor (2022), de Alfredo Manevy,e a musicalidade, o ritmo e estética de Jup de Bairro no videoclipe Transgressão (Parte II), de Jup do Bairro, Felipa Damasco e Rodrigo de Carvalho.
É importante ressaltar que esse conjunto foi elaborado a partir de uma pesquisa muito mais ampla e com uma pergunta constante entre os estímulos curatoriais: como o cinema olhou e dialogou com a música preta no Brasil? Em muitos dos casos, parte desse cenário é de direções brancas, sobretudo nos filmes menos recentes. Ainda assim, o que a programação temática da CineOP tenta visibilizar é, justamente, um movimento de transitoriedade histórica e formal, econômica e tecnológica, que torna o filtro da produção e da circulação menos viciado e estreito.
Vemos o predomínio dos documentários nesta programação, em parte porque a quantidade é muito superior à de ficções com a mesma abordagem, mas também porque lidam com os artistas propriamente, com seus corpos, suas vozes, seus arquivos e suas canções, o que, em um contexto como o daCineOP, é algo importante em si mesmo: a irradiação e a preservação das materialidades (e sobretudo as materialidades da música preta) audiovisuais do passado. É claro que poderia ser um escopo mais amplo e mais diverso, mas a soma de circunstâncias concretas, como existência e condições das cópias, autorizações de exibição e localização de detentores de direitos autorais, são um limite explícito na realidade das mostras brasileiras.
Não será por isso, no entanto, que deixaremos de tentar olhar para frente, alçando luz a esse importante legado construído por artistas da música preta no Brasil.
Cleber Eduardo – curador Temática Histórica
Tatiana Carvalho Costa – curadora Temática Histórica
Rubens Fabricio Anzolin – assistente curatorial