MOSTRA CONTEMPORÂNEA – CONSTRUINDO MEMÓRIAS
A 20ª edição da Cineop criou, além da mostra competitiva contemporânea Arquivos em Questão, a mostra Construindo Memórias, também com filmes contemporâneos, que, com ou sem arquivos, contribuem para a promoção da cultura cinematográfica brasileira e, de modo geral, com a cultura brasileira de qualquer área. Nessa primeira edição da nova mostra, figuras emblemáticas, menos ou mais conhecidas do público em geral, estão no centro da programação: o escritor Jorge Amado, o músico Dorival Caymmi, o pintor Carybé (o mais baiano dos argentinos), a atriz do período silencioso Eva Nill e a companhia musical de elenco negro Brasilianas. Dos anos 20 do século XX à décadas mais recentes, a narrativa histórica empreendida por esses três longas metragens nos colocam diante e no interior de um pulsar de criações e de contextos distintos de diferentes épocas
Melodias afetivas criam uma Bahia
3 Obás de Xangô é, antes de tudo, testemunha de um afeto caloroso e de uma imaginação fértil. Compõe a linha de filmes em que é preciso fazer pouco esforço para que nos vinculemos aos personagens, sobretudo se forem eles, de antemão, ilustres conhecidos, compositores de nosso cotidiano e imaginário cultural, ou, ainda, signos incontornáveis de uma cultura popular Regional e Nacional.
3 Obás de Xangô possui personagens assim — a começar por Jorge Amado, figura central do filme — mas é constituído, em sua identidade primordial, por uma capacidade irreverente de acessar mais do que a memória das figuras que circunda, e sim formular um pensamento e um registro que é guiado pelo signo da amizade.
Amado, Dorival Caymmi e Carybé Camafeu de Oxóssi, três figurões da essência da baianidade, durante muitos anos trocaram cartas, conversas e pensamentos acerca de seus afazeres artísticos e de suas visões de mundo. Aquilo que está registrado em tela, pelo diretor Sérgio Machado, é talvez a síntese de uma realidade prosaica embalsamada — através dos três sujeitos — pela imaginação.
Em comum, acreditavam na baianidade e numa expressão artística (seja literatura, música ou artes visuais) que era proveniente das ruas, valorizando modos de inventar e figurar, no universo do real, um sintoma de imaginação e criação.
Em termos históricos, 3 Obás ocupa-se de trazer à tona as correspondências trocadas entre os protagonistas, material de arquivo não só raro como também muito profícuo, que sedimenta a amizade ao revelar os traços a mão, o carinho solidário — e muitas vezes engraçado — que cada um revela ao outro.
É um filme recheado de expressões desses signos culturais que sedimentaram uma ideia mais ampla e popular de “baianidade”, que conta com uma série de outros ilustres baianos em tela, mas que revela, ao fim e ao cabo, através dos arquivos de trabalhos, das imagens antigas e sobretudo na ponta do lápis, corações enormes e pululados de criatividade.
Uma criatividade que, cremos, e isso o filme nos mostra, não provém do “nada”, provém de um arguto trabalho de pensamento, que vislumbra fazer do imaginário de seu estado um imaginário popular, possível e passível de ser visto no outro, na comunidade, na cultura dos mares e marés, no hábito a na força cultural das mulheres do Candomblé, na vida e nas expressões comuns dos mais humildes.
De um modo ou outro, o filme é um presente, tanto para o presente de hoje, em que podemos rever e revisitar formadores de um estado e de um Brasil, como também presente no sentido de que materializa, mais do que os sujeitos em separado, cada qual com suas características, um magma de pensamento formulado e fundamentado através dos anos de trocas e ideias que constituíram entre si.
O olhar como expressão sem palavras
O Silêncio de Eva começa com fotos, congelamento do tempo, da aparência e do olhar. Congelamento que perdura. São umas poucas fotos da atriz Eva Nill, a Greta Garbo dos trópicos, primeira estrela de um cinema silencioso do interior, nascida no Egito e radicada desde 5 anos em Minas Gerais, região de Cataguases, cidade imortalizada por ser território e set dos primeiros filmes de Humberto Mauro. Uma adolescente de expressões ambíguas, de carreira curta e intensa nos anos 20 do século XX, fotografada pelo pai italiano (Pedro Comello).
Eva e seu pai empreenderam alguns filmes na cidade, chegaram a se associar a Humberto Mauro, ela sempre com atitude profissional, mesmo em momento ainda de muito amadorismo no cinema, consciente de sua importância, a ponto de questionar o papel coadjuvante em Barro Humano, de Adhemar Gonzaga, em 1929,, realizado no Rio de Janeiro.
A voz e os olhares da atriz mineira Inês Peixoto vagueiam por impressões, sensações, talvez sentidos, ao falar da mítica atriz. Bárbara Luz, que interpreta Eva nas encenações recriadoras, ouve sobre a importância da atriz, pela voz e sensibilidade de Inês, que faz poesia enquanto proseia. Três distintos tempos históricos se encontram no presente das recriações visuais de situações e cenas da mítica atriz: os tempos de Eva, Inês e Bárbara.
Se por um lado é um filme de olhares e encantamentos, de linhagens do passado e suas heranças, é também um filme de investigação e pesquisa, com o compartilhamento de informações e contextos por Inês Peixoto, generosa e empolgada por seus materiais e pelo passado ao qual evocam.
Entrevistas com especialistas em pesquisas em cinema brasileiro oferecem hipóteses, informações, contextos e interpretações para as motivações da atriz, para sua atitude empreendedora, para sua fotogenia, sobretudo para a decisão de encerrar sua carreira e se tornar fotógrafa na região onde morava com o pai.
Em uma carreira sem imagens em movimento (por falta de preservação dos materiais), com mais fotogramas do que cenas propriamente, todo vestígio é de grande riqueza, de recortes de jornais e sinopses a trechos de resenhas. O trecho remanescente de Senhorita Agora Mesmo, curta metragem do pai Pedro Comello, de 1927, é, nesse sentido, uma preciosidade.
Em uma mostra com perfil do Cineop, com sua ênfase na educação, na preservação e na memória do cinema brasileiro, Eva Nill é uma emblema dos pagamentos e das ausências em uma cinematografia descuidada a maior parte do tempo com seu histórico. Fiquemos com os vestígios e com as pesquisas
Entre o sucesso, os bastidores e as contradições
Brasilianas: O Musical Negro que Apresentou o Brasil ao Mundo, de Joelzito Araujo, é uma variação às avessas de A Negação do Brasil, fundamental documentário para a compreensão crítica de representações estigmatizantes de personagens negros e negras nas telenovelas.
No novo filme, o diretor continua no campo das representações e expressões dos corpos negros, por meio de uma companhia de musicais composta de elenco negro, porém, agora, enfatizando o êxito internacional dessas representações e expressvidades, primeiro com nome de Teatro Folclórico Brasileiro, depois como Brasilianas, mais tarde como Brasil Tropical.
O espetáculo de macumba, como também ficou conhecido, lotou teatros europeus entre anos 50 e 70, com repercussão midiática e presenças ilustres nas plateias, como Elizabeth Taylor e os Beatles, assim como com desdobramentos inesperados, como parte do elenco fazendo uma cena em um filme com Sophia Loren, Centroviano in Galleria, de Mauro Bolognini, em 1953
O documentário é sustentado por diversos materiais de arquivos e pelas memórias estimuladas nas entrevistas com participantes da companhia, mostradas em uma fragmentos que vão e voltam, que nos informam sobre os bastidores, de amores anônimos e célebres a rivalidades internas por vaidade, mas sem perder de vista a auto estima positiva de todas as pessoas envolvidas.
Esse tom para cima carrega contradições, deixadas para o final, como os critérios físicos de seleção para integrar a companhia e a centralidade do corpo feminino sensualizando em seus movimentos, considerado exploração espetacular pelas perspectivas críticas. Um importante resgate para a cultura brasileira, com ótimas questões para os dias atuais
Cléber Eduardo
Rubens Fabricio Anzolin
Curadores