Diálogos com o passado, olhares para o futuro

Quando iniciamos o processo de curadoria da 19ª Mostra de Cinema de Ouro Preto – CineOP, nos deparamos com alguns desafios. O primeiro foi dar conta de visionar o enorme contingente de curtas e médias-metragens inscritos (mais de 1.200), especialmente em se tratando de um festival cujo recorte temático e estilístico é evidente. O que também levou ao segundo desafio e à mais crucial tarefa: encontrar, em meio a tamanha massa de filmes, heterogênea como sempre, em se tratando de cinema brasileiro, um desenho que fizesse sentido tanto para o evento quanto para com as obras programadas. Dizer dessas dificuldades, assim de largada, nos parece importante, sobretudo para ratificar a ideia de que a CineOP, em sua conjuntura específica, em seu apreço por memória, história, preservação e educação, direciona o olhar para os filmes a partir de vernizes que não passam tão somente pelo apreço estético. O tônus das obras apresentadas aqui, afinal, faz coro a um conjunto de detalhes e percepções que procura diálogo com as outras frentes do evento, priorizando tanto diversidade — racial, social, temática e estética — quanto o potencial temático empenhado pelos curtas e médias.

Afinal de contas, se a curadoria, como ação e prática em si, é sempre um gesto contextual, ou seja, que presta atenção àquilo que está à sua volta, em termos de momento histórico, de território e de diálogo direto com o que se vê em tela, não é possível que uma seleção de curtas contemporâneos apresente outro caráter que não o de fazer conexões, seja com o que será apresentado na temática desta edição (dedicada ao cinema de animação independente no Brasil), seja com aquilo que é proveniente dos filmes diretamente, suas ideias e tendências, em diálogo permanente com o local em que as obras irão ao mundo, a Cine-Praça de Ouro Preto.

Por conta desse somatório de fatores é que elegemos, como sessão inaugural dos curtas e médias da Mostra Contemporânea, uma composição de cinco filmes que possuem, como gesto técnico, justamente a animação. Provenientes de diferentes estados do Brasil, com estilos, durações e características singulares, todos os filmes da primeira sessão da Mostra Praça possuem um traço importante que diz respeito ao evento, a construção e dissipação da memória. Seja por meio de mitos e lendas regionais, retratando personagens específicos de credos ou crenças religiosas e até rememorando a vida de pessoas marcantes na trajetória dos realizadores.

O primeiro desses cinco filmes, Dona Biu (RJ), dirigido por Gabriela Taulois, traz a história de uma benzedeira do interior do Brasil, acompanhando seu cotidiano do momento em que desperta até a hora em que passa a fazer curas. O trabalho possui uma dimensão solene, uma vez que a trajetória de Biu é narrada por uma garota, como se fosse uma lembrança de infância, o que dá ao filme um frescor nostálgico, a partir do diálogo com a infância, produzindo, através da animação, fortes conexões com o passado.

Na sequência, o curta-metragem Pororoca (MG), dirigido por Fernanda Roque e Francisco Franco, nos desloca para o universo das águas, trazendo a história do amor entre a Baleia e o Peixe-Boi. O texto que inspira o filme é uma adaptação de A Inacreditável História do Pescador, de T. Dalpra Jr. Os traços estilísticos do filme, compostos por animações em estilo 2D, carregam em si a leveza do mar, acompanhado por uma bela composição de cores que forma o background e os cenários do filme. Enquanto isso, a banda sonora de Pororoca ajuda a trazer a noção dramática do texto, juntamente com a voz que narra o curta-metragem, tensionando a dimensão mitológica da história, e também ativando um senso de memória que é tão comum aos contos regionais.

Assim como Pororoca, o curta-metragem Curacanga (BA), dirigido por Mateus Di Mambro, também possui seu texto e narrativa apoiado em um ambiente de mitos e lendas. A trama do filme trata da aventura de Agostinho, um rapaz baiano, que sai à caça de uma criatura mitológica para poder conquistar o amor de sua vida, Jaciara, que havia sido atacada por uma criatura do folclore brasileiro, a tal Curacanga. É nesse contexto que a obra, que se passa no Vale do Corrente, oeste baiano, por volta de 1950, faz menção às práticas culturais de contação de histórias que ocorrem no Brasil profundo, em regiões sem voz e sem vez, com frases e bordões que remetem frequentemente a algumas linhas de Guimarães Rosa, trazendo um lirismo poético, mas também trágico, no transcorrer do mito.

O programa ainda conta com a exibição de Lulina e a Lua (SP), de Vinicius Vasconcelos e Alois Di Leo, filme que, assim como os anteriores, tem no seu norte a imaginação. Sua trama acompanha uma garota, Lulina, que dá nome ao filme, enquanto ela desenha por um fundo branco infinito. Ao perceber que, de modo mágico, seus traços ganham vida, a personagem passa a travar uma batalha contra seus medos, ativando os poderes de sua imaginação. O trabalho de animação de Lulina e a Lua encanta pela utilização de fundos infinitos (ora totalmente escuros, ora totalmente claros), e pelo modo como os cineastas operam os movimentos nesse contexto, sobretudo quando figuras que, um dia foram desenhadas, passam a tornar-se reais. É uma história de amadurecimento, bem como de passagem de bastão acerca da sabedoria e da memória presentes nos gestos da infância.

Por fim, Dona Beatriz Ñsîmba Vita (MG), de Catapreta, importante animador do cenário contemporâneo brasileiro, traz o conto de uma mulher singular, em missão divina, que tenta criar um povo próprio a partir de clones de si mesma. O filme, composto por técnicas de animação deslumbrantes, acompanhado de uma trilha sonora climática, tem inspiração na vida e legado Kimpa Vita, uma heroína congolesa do século XVII.

Após a sessão inaugural, composta pelos filmes de animação, o sábado do Cine-Praça traz um recorte de curtas que se articula ao redor do canto e da dança, por meio de trabalhos que trazem em seu âmago elementos como a canção popular, além da memória de povos, culturas e territórios que possuem uma ligação vital com as artes do cinema e da música.

O primeiro filme desta sessão é A sua Imagem na minha Caixa de Correio (DF), dirigido por Silvino Mendonça. Nele, entramos em contato com cartas, recortes de jornais e revistas de cinema que eram alvo dos amantes do entretenimento na virada do milênio. Aos poucos, retornamos pouco mais de 20 anos no tempo, para experienciar a troca de mensagens entre desconhecidos, que se uniam por um conjunto de interesses em comum, como a paixão por determinado ator ou atriz, uma novela em específico, um filme de grande sucesso. A obra mistura memória e melancolia, sobretudo ao tratar de sujeitos anônimos que se tornaram grandes amigos ou amores através das correspondências.

Nesta toada, os dois filmes seguintes, Spell (RJ), de Khalil Charif, e Olha a Hora de Entrar na Roda (BA), de Rodrigo de Carvalho, também misturam nostalgia e melancolia através das artes, mais especificamente da música. Spell é um trabalho de montagem, que visa, a partir de imagens de baladas disco dos anos 1970, compor um imaginário fértil e dançante dos bailes da época, mas o faz por meio de um sistema de conexão de imagens que parece querer conectar-se com cada corpo presente no plano para dar a ele uma vazão de movimento, criando, pouco a pouco, uma atmosfera lúdica na mise en-scène.

Por outro lado, Olha a Hora de Entrar na Roda também segue a linha de um retrato conjuntural inspirado no som, mas, ao contrário de Spell, o filme é montado em somente dois planos sequências. Trata-se de uma roda de samba chula, em Santiago do Iguape, distrito da cidade de Cachoeira, na Bahia. A câmera, que se concentra no calor da roda de samba, adota uma postura não apenas observacional, como também dançante, e participa da roda como se fosse ela mesma um membro daquela celebração. É um filme que, a partir de sua dilatação temporal e de seus movimentos gingados, acompanhando sempre o batuque das canções, consegue acessar a memória de um povo e de um território, de uma prática cultural, pelo fato de se fazer presente de modo ativo, em corpo e cinema, naquele espaço.

Encerrando o segundo programa, Haroldo Saboia nos traz o último curta-metragem, Oração (SP), que se conecta de sobremaneira com os dois últimos por meio não somente do gesto da canção, mas também da produção de memória afro-diaspórica por meio do cinema. O filme traz um bailarino e duas musicistas que, entrecortados na imagem, utilizam-se de fragmentos de textos e canções de Edimilson de Almeida Pereira, Aimé Cesáire, Gilberto Gil, Zé Keti, Nelson do Cavaquinho, Gil-Scott Heron, entre outros, para criar uma sensação única de sonoridade, reflexão e musicalidade que procura, enfim, evocar uma memória uníssona, cinematográfica e musical, mas também muito particular.

Por fim… a terceira sessão, cujo mote está ao redor da produção de memória em territórios brasileiros, abordando tanto óticas pessoais quanto coletivas. Estrela da Tarde (DF), de Francisco Rio, é uma espécie de autobiografia ficcional, transposta em tela através de uma brincadeira entre a montagem de imagens e o jogo de tarô. O filme possui forte relação com a ideia de maternidade e nascimento, e sua produção de memória é manifestada sobretudo pela maneira singular com a qual narra e recorta imagens de si, reforçando as transformações do corpo e do ser no tempo.

Por falar em tempo, Sertão, América (ES, RS, PI), de Marcela Bordin, oferece um registro do processo de criação do Parque Nacional da Serra da Capivara, no Piauí, por meio da presença de desenhos rupestres na região. O filme, contudo, acaba tomando dimensão conjuntural, filmando tanto o espaço como as pessoas que nele habitam. É um olhar singelo, paciencioso e apurado para uma região que é pouquíssimo vista no cinema brasileiro. Suas imagens, feitas de forma analógica, chamam também atenção, uma vez que, com a textura empregada pelos grãos e pelo suporte da câmera, nos levam mais diretamente ao passado, e ajudam a transformar o espaço visto em tela em um registro também sentimental.

Enquanto isso, Histórias que nos Contam (BA), de Luan Santos, aborda, por meio da autoficção, os retratos e fotos de família de seu cineasta, enquanto o mesmo dá vazão às suas memórias por meio da narração das imagens. O filme emprega a trilha musical de modo muito astuto, fazendo conexões com as batidas que acompanham as fotografias, e utilizando também o conceito de sample (recortar), muito comum ao hip-hop, na unidade estética da obra. O lirismo sobretudo, assim como em Estrela da Tarde, se destaca, pois é pela via da oralidade, acompanhada dos arquivos pessoais que povoam o filme, que se pode erguer uma memória que é tanto pessoal quanto coletiva.

Outro curta-metragem que também fala sobre conexões e construções coletivas é Big Bang Henda (SP), de Fernanda Polacow. O filme se estrutura por meio do trabalho do artista angolano Kiluanji Kia Henda, e procura registrar monumentos e paisagens erguidas e destruídas em contextos de guerra. É uma obra que salta aos olhos pelo modo como ergue conexões entre passado e presente, entre memoriais e memórias devastadas, a partir de uma lógica que é documental, mas também poética e alegórica, que nasce do passado, mas aponta sempre para o futuro.

Encerrando a programação, temos o filme Estudo para uma Pintura – O Lavrador de Café (MG), dos artistas Desali e Rafael Dos Santos. O filme observa sujeitos da periferia de Minas Gerais, no que parece aproximar-se de uma região interiorana, e produz uma série de enquadramentos distintos sobre essas pessoas. A postura da câmera, sempre fixa, com uma imagem muitas vezes enrugada, com arestas distorcidas, confere à produção um grau de radicalismo extremo. Concomitantemente, o trabalho dá conta de dimensionar o contexto socioeconômico dos sujeitos em cena, sem nenhuma fala, ao mesmo tempo que é capaz de, com paciência, instituir um tempo muito particular para as cenas. Dialogando com uma prática da manufatura, do artesanato (ressaltada pelas cartelas feitas à mão que guiam o filme), o curta-metragem consegue fazer uma conexão entre as imagens antes vistas (os modelos para pintura), e o trabalho final (a releitura de O Lavrador de Café, de Cândido Portinari).

Dessa forma, os filmes presentes no Cine-Praça da 19ª CineOP, formam um conglomerado de visões sobre o Brasil, a partir de diferentes sistemas estéticos, abordagens e leituras. Mas todos eles, lidando não só com passado, mas também com produção de memórias — – de si, do outro, de suas regiões e suas culturas. Esses filmes, em conjunto, são um brado em direção às tradições que o representam. E servem não somente como um convite à memória, mas também como um modelo efetivo de ação e olhar para o futuro.

Camila Vieira
Rubens Fabricio Anzolin

Curadores