AUTORIAS DE MUITAS MÃOS

O cinema brasileiro de animação oscila em seu percurso histórico entre jornadas obsessivas de algumas pessoas da criação, às vezes trabalhando sozinhas durante muitos anos e com formação autodidata, e iniciativas coletivas nas quais as diferentes funções da equipe se integram em um projeto não menos autoral. É possível fazer um longa ou curta sozinho? Possível é. Há casos. É o modo mais recorrente ou saudável? Provavelmente, não. Mesmo assim, marcas individuais de estilo podem se desenvolver ao contato criativo com outras mãos e olhares. A história da animação avançou com as trocas, com as transmissões, com as maneiras de individualidades serem afetadas por outras.

Embora reconheçamos a força das autorias individuais dos curtas e longas programados para o CineOP, desde a sessão de abertura, com assinaturas de direção fundamentais para a história recente e mais distante da animação no país, decidimos enfatizar e celebrar o ambiente da animação como um todo, como um grande coletivo de criações, em todos os seus estágios, do início à finalização, com todas as mãos que ali contribuíram para as imagens e sons projetados depois nas telas. Uma imagem, com suas formas, cores e movimentos, é obra de muitas mãos, dedos, olhares, técnicas, histórias, imaginários e sensibilidades. 

É inevitável que as direções, por serem exercidas por individualidades que em geral mobilizam a realização com uma ideia e proposta iniciais, sejam as mais reconhecidas, também herança da política dos autores na França, desde anos 50 do século XX, e depois em outros países, com a necessidade de ver na direção de cinema o mesmo lugar artístico e individual da literatura e da pintura. Celebrar o espírito de grupo e a prática coletiva da animação não é abolir a centralidade criativa da direção ou defender apenas os coletivos de animação. Um segmento alimenta o outro. Assim sempre foi na animação ou na live action.

Se há obras centradas ao extremo nos desejos, potenciais e limites de uma só pessoa, há outras tantas criadas na associação e soma de competências. O cinema é uma arte de mediações criativas com a realidade das condições materiais e humanas, com a disponibilidade do dinheiro e com a disposição das equipes. Existe inspiração, mas, sobretudo, trabalho e estratégias, combinados, acordos e negociações entre desejo e viabilidade, entre uma centralidade criativa e a criação junto a outras pessoas. 

A animação é uma arte das mãos, mesmo quando mediadas pelas tecnologias mais avançadas, e manter o padrão com diferentes mãos é, no mínimo, um desafio de desapego a estilos muito pessoais, que se tornam interpessoais também, em busca de um controle sobre o processo e de estratégias com vistas a uma obra de criação com objetivos em comum. Muitas mãos com diferentes funções e na mesma direção. 

Também de outra forma, talvez até mais corriqueira e certamente não acidental, é quando se conta com o talento e repertório de membros da equipe para desenvolver uma obra ainda aberta e mesmo assim sob o comando de um maestro. Parte-se de uma ideia, ou um roteiro, ou um storyboard proposto pelo diretor, que monta sua equipe contando com o retorno criativo e técnico de cada profissional. Ele espera que esses artistas interfiram em suas tarefas para além do que foram escalados a fazer. Que tragam cores, formas e sutilezas. Essencialmente nos detalhes e nos pequenos gestos, que no conjunto fazem diferença, mesmo que num primeiro momento de forma imperceptível. Como o animador constrói cada segundo de uma sequência em movimento ao longo de horas, talvez dias, esses brilhos são incrustados nas cenas com expressiva intenção e esmero. 

Esse contexto é bem-vindo e também incentiva a labuta do artista na etapa da animagem, que é árdua e demorada, tendo que conciliar com equilíbrio técnica e graça. Pois talvez nenhuma outra função no audiovisual um profissional ocupe tantas horas efetivas de seu trabalho em um filme. Esse modelo ativamente participativo é mais enriquecedor e gratificante do que fazer parte de uma produção onde tudo é definido previamente em reuniões e pesquisas de referência, para depois ser imposto à equipe, de quem não se conta com a criatividade – expediente habitual em muitos dos chamados “conteúdos” (leia-se séries e longas comerciais). O processo é engessado a tal ponto que possibilita o uso de mão de obra estrangeira sem grandes problemas. 

Ao menos no curta, formato que é o sashimi do cinema de animação pela vocação de trazer frescor aos olhos, ouvidos e corações – além de ser o espaço para desenvolver novas técnicas, essa busca por algo especial deve ser um objetivo intrínseco.

Quando o cineasta estadunidense Stanley Donen (Cantando na Chuva, Charada, Cinderela em Paris) recebeu um Oscar honorário pela sua carreira, em 1998, disse em seu discurso que para ser um bom diretor basta se cercar dos melhores de cada área. Chamar George Gershwin ou Leonard Bernstein para compor as músicas, atores como Fred Astaire, Audrey Hepburn e Frank Sinatra, além de roteiristas da primeira prateleira. E quando as filmagens começarem, “somente compareça e não interfira no trabalho deles”. 

Exageros à parte, pois a figura do diretor no cinema de animação equivale à de um maestro diante de sua orquestra – ele tanto dirige quanto edita cada expressão da obra, é uma receita que funciona bem no mundo animado. Se nos atentarmos aos créditos de boa parte dos filmes escalados para esta CineOP, encontraremos em suas equipes muitos animadores com obras próprias. Diretores em funções específicas nos filmes de outros, como animadores, cenaristas, designers de personagens, storyboarders. Isto é recorrente no cinema de animação brasileiro e faz aumentar a qualidade e a eficiência de produção dos filmes, pois a equipe tem noção do processo todo. Polivalência e generosidade que viabilizam os filmes uns dos outros.

Na animação autoral, dirigir um curta meio que equivale a dirigir um longa em live action. Não só porque os tempos de produção são semelhantes, mas essencialmente porque tanto diretores estreantes de curtas animados quanto de longas filmados vivem o mesmo momento profissional. Ambos fatalmente trabalharam em funções secundárias de outras produções e se testaram dirigindo vinhetas animadas ou curtas filmados, respectivamente – formatos típicos para formação. Para só então, não mais neófitos, decidirem dar o grande passo artístico. Portanto o animador já atinge a maioridade profissional em seu primeiro curta-metragem, ao contrário do curta-metragista de live action. 

Assim se justifica o destaque desta curadoria para o curta animado, no objetivo de, através deles, traçar a trajetória do cinema de animação brasileiro. 

Cleber Eduardo
Fábio Yamaji
Curadores | Temática Histórica

ALÊ ABREU | ANIMADOR E DIRETOR

COERÊNCIA, AUTORALIDADE E INDEPENDÊNCIA NA ANIMAÇÃO

Alê Abreu é o homenageado da 19ª CineOP. O cineasta é o nome mais internacional da animação brasileira. Teve dois dos três longas metragens exibidos no Festival de Aneccy (O Menino e o Mundo e Perlimps), o evento mais importante da animação, onde chegou a ser premiado (com O Menino e o Mundo). E ainda foi indicado ao Oscar da categoria (com o Menino e o Mundo). Isso foi há 11 anos. Abriu portas para ele e para a animação brasileira.

Essa repercussão positiva em termos de mercado e prestígio tem sua importância em um momento de transições na atividade da animação, nunca tão ativa, mas sempre com muito a ser feito em seu universo estruturante, que oscila entre o tempo e a energia de dedicação às obras autorais e a necessidade material de atender as demandas de mercado.

O diretor, desenhista e artista visual paulista se tornou  um emblema de criatividade formal e de processo autoral independente em sua criação. O Menino e o Mundo é uma das mais expressivas obras de todo o cinema brasileiro, incluindo ficções, documentários e variações. Exagero? Acreditamos, convictamente, que não. O filme foi eleito a melhor animação do país em votação organizada pela ABRACINE (Associação Brasileira de Crítica de Cinema). E é altamente subversivo em relação às noções de narratividade, de espacialidade e de movimentos. Um experimento radical (também para crianças)

A homenagem ultrapassa esse filme-fenômeno. Está ancorada, principalmente, em uma trajetória. Não exatamente numerosa, cheia de títulos na animação, mas coerente e obsessiva. É um reconhecimento a um percurso autoral que, neste momento, completou 31 anos de seu primeiro curta-metragem, Sirius (1993), no qual traços de seu estilo visual, narrativo e dramático estavam já semeados, e logo após o aniversário de 10 anos de O Menino e o Mundo (2013). 

Embora tenha atuado em diferentes atividades relacionadas ao desenho e à ilustração, em livros, publicidade e séries, Alê Abreu, aos 53 anos, é a assinatura mais reconhecida dos últimos anos do cinema de animação no Brasil. especialmente por fugir dos padrões uniformizantes da animação mais industrial e fazê-lo com muita ênfase na visualidade e na criação de mundos próprios, que, se nutrem relações com a realidade, nunca é de modo direto.

Sirius e O Espantalho, o curta seguinte ao de estreia, também de 1993, revelam pontos em comum, mas também contrastes. Há em ambos a falta de palavras, o investimento nas cores (mais sóbrias no primeiro, mais quentes no segundo), personagens solitários que interagem com seres de outra natureza, a convivência entre desenhos e fotos na animação e uma importância estruturante da trilha musical, delicada e sentimental. São curtas de uma beleza melancólica, de uma realização infantil pela imaginação. 

Essa preferência por protagonistas que vivem situações iniciáticas, de encontros transitórios e deslocamentos de aprendizado, será retomado nos longas-metragens. Alterna-se entre o mundo tal qual se conhece e o desconhecido diante do qual será preciso se reinventar. Há um mistério, um deslocamento a ser realizado, a abertura para experiências nem sempre determinadas e claras em seus caminhos. Sobretudo em Menino e o Mundo e Perlimps, filmes a princípio contrastados entre si, mas próximos de  uma mesma visão de cinema: o que não está evidente, mostrado e explicado é tão importante quanto o que se sabe. 

A estreia em longa-metragem, Garoto Cósmico (2007), é uma junção de duas histórias, ambas escritas em cadernos de anotações e desenhos do autor: uma lidava com o circo, outra com o espaço. O filme é a jornada dos rebeldes mirins que, meio acidentalmente, escapam de uma sociedade de controle fria e codificada em números (ao estilo de George Orwell em 1984), em 2973, na Galáxia Sétima, Sistema Solar 54, e vão ao encontro casual com uma trupe circense em um mundo colorido, no qual as singularidades estão acima das homogeneizações. Antes de ir às imagens, leitura de roteiro com crianças e realização de um documentário sobre o mundo do circo, feito como preparação para o filme

Depois do êxito do segundo longa, O Menino e o Mundo, com sua jornada ao mesmo tempo delirante e simples, com experimentos visuais e um encadeamento de fragmentos autônomos, que não chega a constituir uma narrativa, Alê dirigiu Perlimps, seu filme mais colorido, sem os campos brancos do filme anterior, com dois personagens antagonistas perdidos em um bosque ameaçado por gigantes. É um Esperando Godot (de Samuel Beckett) para crianças, na floresta, com dois inimigos unidos na circunstância (de sobrevivência), à espera de um inimigo comum que nunca chega para enfrentarem. 

É um filme aparentemente mais narrativo, mais controlado e mais atrelado ao mercado, mas só aparentemente, porque o que se encontra, na relação entre as imagens, no ritmo e na espera pelo climax adiado, é uma obra muito autoral e rompida com as seduções fáceis. Os mistérios são preservados dos desejos insaciáveis de revelação. Sem a mesma repercussão de O Menino e o Mundo, mas ainda assim entrando em Aneccy, Perlimps manteve o diretor no cenário internacional e em uma trajetória de preservação e mudanças a um só tempo

A exibição de seus curtas e longas na programação da 19ª CineOP, em suas versões presenciais e online, é uma oportunidade de vermos em conjunto uma obra coesa, apesar das diferenças, em constante desenvolvimento, fiel a seus primeiros passos, mas com a adição da maturidade e da relação com o mundo fora do papel e das telas.

Cleber Eduardo
Curador – Temática Histórica

Fábio Yamaji
Curador Assistente – Temática Histórica

Fotos: Leo Lara / Universo Produção