O HUMOR DAS MULHERES NO CINEMA BRASILEIRO
Do que riem as mulheres no cinema brasileiro? Riem de si mesmas, de outras mulheres, dos homens, da sociedade, de tudo isso? E do que rimos dessas mulheres em tela? Rimos de situações que as constrangem, que as submetem ao patético, que as colocam, negativamente, como inadequadas às regras de comportamento, aos padrões de beleza e de feminilidade? Ou rimos também com a potência do desequilíbrio, com a possibilidade de colocar um espelho distorcido da sociedade na tela, que nos interpela e implica, mesmo quando procuramos manter a superioridade e a distância? O humor lida com esse duplo movimento no cinema: nos coloca acima e diante do que está sujeito ao riso. O cômico é, quase sempre, um comentário em sua exposição distorcida; é um poder reativo ou (re)afirmativo de inabilidades sociais em geral, reconfiguradas, criticamente ou não, nas comédias. E claro, cada época tem seus humores, seus limites, seus estereótipos expostos ao riso e suas negociações: do que e de quem se pode rir? Em um cinema predominantemente realizado por homens, as mulheres já foram muitas vezes motivo de piadas de olhares masculinos. E quando o olhar é feminino?
O Humor das Mulheres no Cinema Brasileiro é a temática histórica da CineOP em 2025. Destacamos mais de uma geração de realizadoras e de atrizes na prática do humor no cinema, evidentemente com carreiras extensivas à televisão. De Dercy Gonçalves (a poderosa chefona da turma que voou longe entre os anos 50 e 70) a Regina Casé (continuadora e atualizadora de Dercy a partir dos anos 70), abordaremos, por meio de filmes e rodas de conversas, profissionais iniciadas no cinema em distintos momentos históricos. Em cada um desses momentos, a comédia cinematográfica será colocada em relação aos estímulos de seus entornos e de seus presentes de realização. Algo permanece de alguma maneira entre Dercy e Tatá Werneck, com seus portes miúdos e excessos gestuais, mas em cada atriz e em cada trabalho as particularidades compõem uma diversidade de comicidades, e com cada vez mais diretoras à frente dessas atrizes.
Quando estamos diante de filmes dirigidos e protagonizados por mulheres nas comédias, podemos ter mais clareza sobre quem ri do que daquilo de que se está rindo. Isso não significa, de largada, que haja um humor feminino, genérico ou absoluto, mas um humor de diferentes estilos e olhares, atravessados por experiências marcadas pelo gênero, contrastantes entre si, talvez desafiando ao máximo e com complexidade alguma tentativa de síntese fácil, redutora ou essencialista. Se existe um humor feminino, pensamos, ao propor essa temática histórica, que ele é heterogêneo, embora também predominantemente de pele clara, de comportamentos heteronormativos e de corporeidades cisgêneras. Aos poucos, isso muda. E a tendência – observada nas margens, ou melhor, nos novos centros de produção audiovisual no Brasil – é a maior diversidade de corpos, mobilizando maior diversidade de temas e de estratégias cômicas. Não existe um tipo único de riso.
Tampouco existe inocência no humor. Existiram, sim e sempre, muitos preconceitos e conceitos, estratégias em um jogo (nada) sutil de poderes. Tomemos o exemplo icônico de Dercy Gonçalves, que teve seu auge no cinema na segunda metade dos anos 50, após início no teatro mambembe e de revista e de se tornar, a partir de 1963, a maior estrela cômica da televisão, prestígio que perduraria nos muitos anos seguintes. Dercy sempre encarnou várias personagens pobres e espertas, duras e brabas, dadas a gritos e grosserias para os padrões pequeno-burgueses com os quais negociavam. Mas essas personagens (como a própria atriz) também eram insubmissas o suficiente para driblar seus lugares sociais, para farsescamente burlarem identidades de classe, para estrategicamente empregarem truques para melhor viver em termos materiais. Na maioria dos seus filmes, Dercy é uma performance à parte, com registro próprio e deslocado dos demais, em geral mais naturalistas. Essa desobediência e inadequação são formas de resistir à caricatura e ao exotismo aos quais era submetida por roteiros e direções.
Por muitas décadas, além de Dercy, poucas atrizes trilharam caminhos no humor, ao menos como protagonistas. Regina Casé fez, excepcional e destacadamente, essa transição a partir dos anos 70 para os dias atuais. Nesse fluxo histórico, também estão presentes atrizes como Cristina Pereira, Marieta Severo, Fernanda Torres, Marisa Orth, Eliana Fonseca, Adriana Esteves, Andreia Beltão, Dira Paes e tantas outras. Na direção, o deboche aos bons costumes de Tereza Trautman e o cinema do absurdo de Ana Carolina, cujo marco é sua Trilogia da Mulher, iniciada com Mar de Rosas (1977), abriu veredas para que, nos anos 1980 e 1990, realizadoras como Carla Camurati, Eliana Fonseca, Betse de Paula, Alice de Andrade, Anna Muylaert e Rosane Svartman experimentassem, em seus primeiros curtas, matizes do humor que confirmariam suas produções mais tardias no longa-metragem. De algum modo, os trabalhos dessas mulheres estarão na constelação engendrada na CineOP.
O momento atual é um pouco diferente. Os últimos anos do cinema popular brasileiro, sobretudo a partir de 2013, foram marcados, entre outras características, pelo protagonismo feminino nas comédias, tanto na direção quanto na atuação. Tata Werneck, Ingrid Guimarães, Mônica Martelli, Miá Mello, Fabíula Nascimento e Thalita Carauta são algumas das atrizes que conformam um star systemcontemporâneo deste cinema de humor de maior visibilidade. E o figurar de Julia Rezende, Cris D’Amato e Susana Garcia entre realizadoras que conseguiram superar com seus filmes mais de 1 milhão de espectadores é uma novidade histórica dos últimos 15 anos. Até então, as únicas a estarem na direção de obras de grande público haviam sido a antiparadigmática Carla Camurati, com seu singular Carlota Joaquina, Princesa do Brazil (1995); e Tizuka Yamasaki, sempre com Xuxa à frente do elenco e da proposição – o que equivale a dirigir uma marca, uma rainha, não exatamente uma atriz em comédia. O humor nesses filmes vinha de outros intérpretes.
Nos curtas-metragens, o humor de mulheres tem mais quantidade e diversidade, desde diretoras depois mais conhecidas nos longas, como Carla Camurati, Eliana Fonseca, Anna Muylaert, Alice de Andrade, Sandra Kogut e Betse de Paula, até outras marcantes atualmente na curta duração, como Sabrina Fidalgo, Clara Anastacia, Gabriela Gaia Meirelles, Fernanda Chicolet, Gisella de Melo, com ainda poucas, mas notáveis, diretoras negras em progressão. Essa é uma discussão ainda a amadurecer, sobre quais os tipos de humor praticados pelas mulheres em geral e pelas mulheres negras em particular, em relação a quais universos, a quais situações e com que viés. Porque ainda existe, a essa altura do século 21, muita visão estreita sobre humor. Há ainda quem só veja a presença da comicidade em tortas na cara e saltos quebrados na escada, sem perceber ironias, sutilezas e abordagens críticas nas comédias de qualquer natureza (nem todos vão para o escracho).
É interessante perceber que o humor no cinema brasileiro, mesmo mais contido que as investidas cômicas da televisão, tende a não ser de livre acesso etário nas sessões, dificultando nossa disposição em programar comédias para as sessões ao ar livre na Praça Tiradentes, em Ouro Preto. A graça invariavelmente pode ofender mães e pais de família, nem sempre são apropriadas para crianças com menos de 14 anos, mesmo estando essas crianças submetidas a imagens de violência e a todo tipo de grosseria. Isso nos faz lembrar que o humor pode ser perigoso, pode ser ofensivo e pode ser motivo de cancelamentos. É uma discussão que, de alguns anos para cá, tornou-se constante, com zonas de proteção em relação a piadas com personagens estigmatizados por alguma característica física, seja a obesidade, a falta de beleza padrão, a cor da pele ou a estatura.
Fora do cinema, observam-se, ainda, fenômenos internéticos femininos no humor, como Clarice Falcão, Thati Lopes, Letícia Lima, Noemia Oliveira, Evely Castro, Maria Bopp, Miranda, Pequena Lô ou Ademara. E, para além das telas, esse protagonismo também está nos palcos: não apenas no teatro, mas também e sobretudo nos stand ups – espaço em expansão e no qual começaram atrizes hoje multimidiáticas, como a própria Tatá Werneck. Na verdade, grande parte das atrizes que despontaram nas redes sociais têm sido absorvidas pela produção televisiva e cinematográfica. A comédia brasileira é um ecossistema que se retroalimenta.
Sem desconsiderar essas manifestações humorísticas (multifacetadas) de ampla visibilidade, procuramos olhar, ainda, para experimentações cinematográficas menos industriais, que foram trilhando seus caminhos de modo menos evidente: em circuitos mais fechados em termos de público, mas mais abertos às diferenças estéticas e formais.
Não se consegue abranger cada parte do todo, ainda mais em um evento de curta duração. Por isso, aquilo que será posto em tela e em debate, de certo modo, levará em consideração o que não estará em foco, já que cada filme é cada filme, cada diretora é cada diretora e cada atriz é cada atriz, sem, com isso, deixarem de estar em relação com as estruturas culturais moduladoras de uma sociedade e com a consciente transgressão dessas modulações.
Cleber Eduardo
Curador
Juliana Gusman
Curadora Assistente