IMAGENS DA MPB (MÚSICA PRETA NO BRASIL)

A temática histórica do CINEOP 2023 terá como universo a Música Preta no Brasil em sua relação com o cinema e com o audiovisual de um modo geral, com expansão de possibilidades de acessos e de captações de imagens e sons, saindo, assim, do campo cinematográfico e televisivo para adentrar um universo de criações e  reciclagens nas redes sociais e nas plataformas mais populares da internet.

A edição colocará em evidência e discussão a presença da criação musical de artistas pretas e pretos nas trilhas e nos elencos, como personagens em ficção, documentários, videoclipes e performatividades variadas. A música preta como uma questão de contextos históricos e culturais nos séculos XX e XXI, como criação e retrato de universos populares, como inventividade formal de seus tempos de criação, como herança de tradições atualizadas do passado e de outras geografias, como riqueza a ser preservada na relação com as imagens.

Optamos pela Música Preta em Brasil, e não Brasileira, para não cultivar o risco dos limites da identidade nacional, de brasilidades pressupostas, dos achatamentos das experiências e traços culturais no país, assim evitando uma ideia de brasilidade aglutinadora no título, como muito se fez em arte e cultura brasileira na busca de uma construção identitária nacional sintética e homogênea. 

Podemos, então, manter a ênfase na circunscrição territorial (o Brasil), que é composta de muitas diferenças sob o termo música preta (ou de pessoas pretas), sem também ecoar o que pode e o que deve ser uma música preta, mas lidando com estes ritmos pelo que foram e são, sem nenhum pressuposto com vias a uma legitimação cultural de fora para dentro. 

Também é fundamental desviar-se na programação e nas conversas da noção idealizada e estereotipada de cultura popular preta e das armadilhas de se olhar para as manifestações artísticas pretas no Brasil como herança direta e pura das matrizes africanas, sem considerar o ambiente e as outras influências culturais deste contexto nas quais foram criadas em diferentes momentos históricos, agindo sobre o mundo onde se vive e transformando-o com suas singularidades, tradições e renovações, tudo a um só tempo, como costumam ser os percursos de culturas e artes de povos da diáspora Afro Atlântica, com suas perdas de laços, fabulações e reconstruções de vínculos.

Historicamente, essa relação da música preta em ficções e documentários teve uma presença tímida no cinema brasileiro e só se ampliou de modo considerável nos últimos 25 anos, com a profusão de filmes e séries sobre diversos artistas, brancos e pretos, em sua grande maioria dirigidos por pessoas brancas e com o tom de biografia legitimadora como norte. Mesmo com uma imensa maioria de filmes estruturados em torno de uma profusão de depoimentos, há prevalência de um tom oficial na alma do negócio e uma dificuldade em estabelecer diálogos formais ou de alguma inventividade com os ritmos e as pessoas filmadas. A aceitação industrial da música preta no audiovisual teve também seu preço a pagar pelo bônus de visibilidade. Fora do cinema, universo mais amplo e mais complexo, há mais porosidade, com proponentes, proposições e invenções nas plataformas. 

Nem sempre foi assim. A presença musical preta no cinema aconteceu pontualmente até o fim da década de 50, espelhamento das ideologias de branqueamento da população, da brancura dos grandes astros de rádio e mesmo de um gênero popular e inclinado ao universo do samba e do carnaval como a chanchada. Carnaval, quase sempre, de brancos. Inclusive nas trilhas musicais. Somente a partir de Rio 40 Graus e Rio Zona Norte, de Nelson Pereira, na segunda metade dos anos 50, é que essa relação começou a ser tecida. Zé Ketti foi figura importante na expansão do samba para fora do morro, seja em suas colaborações com Nelson Pereira dos Santos nestes dois filmes, seja em sua importância no primeiro disco de Nara Leão em 1964, que tinha outros compositores pretos por trás da voz de Nara. 

A música popular de pretos e pretas no Brasil sempre foi criminalizada em diferentes contingências, seja o samba no século XX, o rap a partir dos anos 80 do século passado e o funk um pouco depois até os dias correntes. Estiveram sempre na contramão da música brasileira oficial, mesmo servindo a ela, como no caso dos sambas de pretos gravados por intérpretes brancos. Mantida em um terreno/terreiro de dissenso e de marginalização ao longo de seu percurso de existência, iremos propor que, nesta relação do cinema com a música preta do Brasil, não haja filmes acomodados no registro de artistas e em entrevistas ou dispostos a sacralizar seus personagens em abordagens canonizadoras e salvacionistas. Interessa sobretudo lidar com filmes que, como tantos artistas da música preta do Brasil, proponham uma arte fabuladora, reformuladora e inventiva, a música como afirmação de um modo de vida e de uma vitalidade existencial e coletiva, não apenas no mundo como também no cinema.

Cléber Eduardo
Tatiana Carvalho Costa
Curadores Temática Histórica