ESPECULAÇÕES DAS MEMÓRIAS EM CONTEXTO DE PRODUÇÃO INTENSA
No contato com os inscritos do segmento contemporâneo da CineOP, em 2024, vivenciamos por umas tantas semanas um grande espanto. Antes de lidarmos com nossa proposta de programação e com as especificidades dos cinco longas-metragens programados – Agudás – – Os Brasileiros do Benin, de Aída Marques; A Portas Fechadas, de João Pedro Bim; Boom Shankar – o– O Filme Perdido de Guará, de Sergio Gag, Pereio, Eu te Odeio, de Allan Sieber e Tasso Dourado, e Othelo, o Grande, de Lucas H. Rossi –, queremos enfatizar o explícito e complexo fenômeno social e cultural no cinema brasileiro, fruto de políticas públicas e da apropriação do digital, que se manifestou na quantidade de longas-metragens inscritos para a 19ª edição da Mostra (265 filmes).
Sabemos que os cinco filmes programados na Mostra de Longas-Metragens Contemporâneos não dão conta de espelhar, com seus traços singularizantes e com seus outros traços representativos (de formas e temas de cinema), esse grande volume pouco visibilizado dos filmes inscritos, que estão sendo realizados de todos os jeitos e em todos os cantos do país. São longas feitos com políticas públicas, sem políticas públicas, uns com ambição de estarem no circuito de festivais e de estreias comerciais, outros aparentemente sem essa ambição ou sem a noção de quais seus caminhos de existência em telas, alguns realizados por equipes com ambição formal e domínio técnico, outros por equipes empenhadas em adentrar ao universo do cinema, mas ainda com condições precárias e êxitos frágeis (quando há). Muitos desses filmes não são e não serão vistos em telas convencionais do circuito, em festivais de cinema ou mesmo em telas alternativas desses meios oficiais.
Esse universo de ficções (40% dos inscritos) e documentários (60%) foi filtrado com uma orientação clara de nossa parte: focar em filmes com características sintonizadas com as ênfases da CineOP. Os cinco longas programados são filmes com materiais visuais e sonoros de alta relevância para a educação, para a preservação e para a história do cinema brasileiro e do próprio país. Os modos formais de acionar a relação com o passado e com a memória são diferentes entre os longas-metragens, assim como diferentes são os universos humanos, históricos e sociais nas imagens e nas palavras de cada um. O predomínio completo é do documentário, embora modos distintos de documentário, todos de olho no passado (século XIX e diferentes décadas do século XX), com trânsitos por outros países (Benin, Índia).
Materiais de arquivos estruturam ou têm função importante nesses quatro documentários que compõem a Mostra de Longas-Metragens Contemporâneos. Filmes que, de alguma forma, acionam questões políticas, sejam as relativas ao Estado durante o regime ditatorial iniciado em 1964, sejam as relacionadas a performances transgressoras no começo da década de 1970 (sob essa mesma ditadura), sejam as referentes à história da escravidão e do tráfico negreiro também marcada pela experiência dos que retornaram do Brasil-Bahia para o Benin, seja as relativas às implicações raciais na vida de um mito negro do cinema brasileiro visto como um cidadão, um trabalhador.
Racismo dos grandes
O documentário de arquivos Othelo, o Grande (2023), de Lucas H. Rossi, ganhador do prêmio de Direção no Festival do Rio, enfatiza a consciência do ator sobre o racismo. Um gesto expressivo para um pioneiro negro no cinema de alcance popular, que passou inicialmente por apresentações como cantor, inclusive no Cassino da Urca, antes de atuar no teatro, no cinema e depois na televisão. Um vanguardista famoso, popular, mas limitado (não por suas características, mas pelos entraves sociais).
É na seleção, organização e montagem dos arquivos, propondo uma conversa entre os diálogos falados por Othelo e suas falas públicas, que reside a força do filme. Não é a força do ineditismo ou do material raro, mas a força da raridade de uma abordagem, de uma ênfase em busca da relação entre o passado e a contemporaneidade (mesmo após 31 anos de sua morte, em 2024).
Tanto em suas aparições em cenas de diversos filmes de diferentes épocas, a partir da década de 1940 dos anos 40 do século XX, quando inicia sua carreira nos estúdios Atlântida sob a direção principalmente de José Carlos Burle (Moleque Tião em 1943; Também Somos Irmãos em 1949), quanto nas entrevistas durante as quais conta momentos de sua vida, Sebastião Bernardes de Souza Prata, nascido em 1915 em São Pedro de Uberabinha, atual Uberlândia, menos de 30 anos após o fim oficial da escravidão, se coloca como cidadão reflexivo e crítico, como trabalhador e como homem, não como mito, folclore ou lenda, em uma sociedade na qual seu reconhecimento não superou o nível de preconceitos e de exploração (como acontece com seu personagem em Rio Zona Norte, 1957, de Nelson Pereira dos Santos). Sua voz também é empregada para elaborar uma narrativa histórica do cinema brasileiro.
O diretor Lucas H. Rossi chamou a atenção com os curtas Ser Feliz no Vão e e Atordoado, Eu Permaneço Atento, ambos de 2020, com questões raciais e políticas na linha de frente. Ele vê Othelo como griô, um transmissor dos conhecimentos ancestrais. Só Othelo fala sobre si e sobre as barreiras para artistas e cidadãos negros. Ninguém fala sobre ele. Rossi abandonou as entrevistas feitas com figuras próximas, como Paulo José e Zezé Motta, usadas em vídeos de apresentação do projeto em editais, para se concentrar em sua narrativa já multifacetada. Foram pesquisadas mais de 300 horas de materiais de arquivo. Uma parte significativa dos materiais estava mal preservada. Durante a produção, ainda foi necessário lidar com a interrupção das atividades na Cinemateca Brasileira durante a gestão Bolsonaro. Othelo, o ator, e Othelo, o filme, são reflexos de um país.
A recuperação do filme perdido
O documentário Boom Shankar – O Filme Perdido do Guará, de Sergio Gag, traz, em seu próprio título, sua maior força: as raras imagens de um filme homônimo e inacabado do múltiplo artista mineiro Guará Rodrigues (1943-2006), que, nos anos 60 e 70, principalmente, esteve à frente das câmeras de alguns filmes de autorias fortes do cinema moderno brasileiro, como Julio Bressane, Rogério Sganzerla e Neville de Almeida. Em 1973, Guará viajou, com uma pequena turma de amigos, para a Europa e a Índia. Durante a viagem, filmou situações e cenas para um filme (o Boom Shankar de Guará), nunca concluído, com equipe e elenco se revezando nas funções. Um filme em viagem e um filme de viagem, não só pelo viés geográfico. O documentário tem sua primeira sessão na CineOP.
Além das imagens e do áudio típicos do momento de contracultura no início dos anos 70, com uma entrega visceral e de confronto com a caretice da “cultura ocidental”, ,o material da filmagem é acrescido de um diálogo com as memórias faladas do elenco/equipe. Ouvimos muito sobre o processo intuitivo e caótico de Guará, sua disposição de filmar uma viagem no tempo e no espaço inspirado em Marco Polo, sobre a cinefilia e a erudição do ator/diretor, assim pincelando um retrato dos modos de criação de um segmento cultural brasileiro, marcado pela demolição de convenções e padrões em geral. Guará lamenta, em um áudio de 1973, presente no documentário, que, apesar de já ter atuado em mais de uma dezena de filmes até então, em poucos anos de carreira, nunca havia sido filmado com uma rosa em seu ânus. Esse é o espírito do material.
As imagens do filme de 1973 estavam guardadas, sem identificação, com outros materiais de Paulo Nogueira, fotógrafo do filme de Guará e sócio da DGT, produtora do filme de Sergio Gag. Mais de 40% do bruto se perdeu, mas o que restou, depois de ter sido tratado, entrou na montagem do documentário.
A raridade e a representatividade estética das imagens de um momento histórico específico, o começo dos anos 70, sob regime militar movido a pancada, é já um material relevante no contexto da CineOP, com seu investimento na memória, na preservação e na educação. Temos um documento revelador de um filme nunca concluído e de uma época com outros processos de filmes realizados em exílios ou auto-exílios, como aconteceu com Júlio Bressane e Glauber Rocha, entre outros, ao longo da década de 70. Drogas e viagens, ou viagens com drogas, era uma zona de escape.
O diretor Sérgio Gag produziu alguns trabalhos antes, mas o de maior destaque é Fio de Alta Tensão, no qual lida com a diversidade étnica, estética e identitária no Brasil. Boom Shankar, até o momento, é seu trabalho mais importante. E talvez sua importância seja a de agir como um transmissor. Se o documentário articula os depoimentos dos participantes da road trip movie com as imagens ao mesmo tempo belas e grotescas do filme de Guará, procurando uma relação entre as marcas do passado e as memórias do presente., há em suas escolhas uma disposição por manter um modo discreto e respeitoso no resgate e das imagens do filme nunca concluído.
Ode às avessas (ainda ode)
Pereio, Eu te Odeio (2023) é uma ode às avessas, sem deixar de ser uma ode, a uma das mais importantes figuras do cinema brasileiro, o ator gaúcho Paulo César Pereio, falecido em maio de 2024, aos 83 anos. Sua produção está sendo desenvolvida desde meados de 2010 por Allan Sieber e Tasso Dourado, com muitas interrupções nas captações e um adiamento constante de sua finalização. Tomou forma apenas em 2023, tendo estreado no Festival do Rio e exibido na Mostra de São Paulo, após um longo processo de pesquisa e entrevistas.
O documentário mistura animações, trechos de filmes com o ator, aparições dele em programas de televisão e, sobretudo, entrevistas com figuras-chaves em sua vida A montagem alterna histórias contadas pelos entrevistados com cenas marcantes de Pereio, procurando similaridades entre aquilo que o ator muitas vezes encenava e aquilo que, até o fim da vida, marcou sua personalidade como sujeito (e, muitas das vezes, a reduziu também), como o vício pelo álcool e o espírito carrancudo e aventureiro.
Tanto Pereio quanto o documentário transitam por aquele estreito espaço fronteiriço e nebuloso entre a evidência de uma presença cênica monumental – – a de Pereio em filmes ou na vida – – e uma valorização de um anedotário sempre ameaçador do valor artístico de um ator facilmente redutível a caricatura. Não à toa um dos diretores é chargista – (Sieber) – e, em seus curtas, usou Pereio como voz e personagem.
Paulo César Pereio, por si só um pedaço importante da história do cinema brasileiro, nasceu em Alegrete, em 1940, e teve o início de sua trajetória no teatro já em Porto Alegre, quando estrelou a adaptação de Samuel Beckett, Esperando Godot, em 1958, com o Teatro de Equipe, ao lado de Paulo José. Sua vida no cinema passou por diversas fases e movimentos importantes, mas começou a ganhar destaque sobretudo com os primeiros filmes do Cinema Novo, a partir de suas participações em Os Fuzis (Ruy Guerra, 1964), Terra em Transe (Glauber Rocha, 1967) e O Bravo Guerreiro (Gustavo Dahl, 1969).
Pereio, Eu te Odeio aproveita a gama de situações, cenas e monólogos do ator para colocar em tela pedaços desses e de tantos outros filmes, tentando achar um meandro entre personagem e sujeito, entre ficção e realidade. As histórias contadas dimensionam o espírito flanante do homem-lenda, sua inconformidade e falta de educação, seu talento e esforço ímpares para com a atuação. Pereio, Eu te Odeio é uma aproximação sagaz a várias frentes do que compunha sua persona da vida real. Os arquivos presentes no filme tecem uma memória crucial, ressaltando não somente a quantidade de obras, mas a importância dessas criações nas quais o ator esteve envolvido, como coadjuvante de destaque ou como primeiro plano.
Abrindo o baú
O golpe civil-militar de 1964 completou 60 anos. Sem estar vinculado a essa efeméride, A Portas Fechadas (2023), do estreante em longa-metragem João Pedro Bim, exibido no IDFA (Festival Internacional de Documentários de Amsterdã, o maior do mundo para documentários), lança sobre o período um olhar atento, engajado e articulado em relação a seu material, com uma montagem de arquivos do período da ditadura, alguns produzidos poucos meses antes do golpe, muito orgulhosos em sua publicidade ufanista do regime.
O documentário foi programado para a CineOP por conta daquilo que produz trabalhando com seu complexo acervo de arquivos. Seu material pode ter familiaridade com outros do período, mas também possui imagens menos vistas e palavras menos escutadas. O áudio-guia do filme, por exemplo, com as participações de 24 homens do alto escalão do poder federal na reunião de decisão pelo AI-5, ficou perdido até o fim dos anos 1980 – era já uma cópia em fita cassete da gravação original, que, ao longo dos anos seguintes, desapareceu e reapareceu misteriosamente.
Esse áudio é o elemento disparador do filme, com as vozes do poder, a começar pelo presidente Costa e Silva, na reunião do Conselho de Segurança Nacional, ocorrida em dezembro de 1968, que definiu pela instauração do Ato Institucional 5 (AI-5). No filme, as falas dos políticos e militares são entrecortadas por imagens de cinejornais da época, que funcionavam como materiais de propaganda ideológica do governo militar.
Os arquivos apresentam o Brasil como um produto para a propaganda do regime, a maioria proveniente dos anos 1970, que vendiam a imagem de um país próspero, pacífico e desenvolvimentista. Nesse sentido, destacam-se os discursos positivos a respeito da construção da Transamazônica, um exemplo, para os militares, do avanço industrial pensado para a nação. Os discursos sobre segurança, paz e educação são montados valendo-se de intervenções na velocidade das imagens e de horrores que poluem a banda sonora como aspectos de uma leitura interpretativa da visão de um Brasil supostamente pacífico.
João Pedro Bim, sócio da produtora A Flor e a Náusea, obteve destaque por conta de seus trabalhos como diretor de produção em curtas-metragens premiados no circuito brasileiro, como os recentes Liberdade (Pedro Nishi e Vinicius Silva, 2018) e Mesmo com Tanta Agonia (Alice Andrade Drummond, 2018), além de ter sido produtor associado do longa-metragem Os Jovens Baumann (2018), dirigido pela montadora de A Portas Fechadas, Bruna Carvalho de Almeida.
Em A Portas Fechadas, Bim produz distanciamento crítico e ironia, intercalando o projeto de um falso Brasil presente nas imagens da indústria de propaganda da época com a dura e inescrupulosa realidade da faceta política presente na fala dos então governantes. É uma espécie de encontro entre um sonho fracassado do governo militar e a realidade sanguinária que o alicerçava. O cineasta fabrica um dispositivo sagaz, carregando-nos ao calor dos anos de chumbo ao mesmo tempo que deflagra a crueza de sua dura realidade.
Vozes de outrora
“Para onde foram as vozes de outrora?”, perguntam dois atores-personagens africanos em uma das cenas performáticas de Agudás – Os Brasileiros do Benin (2023), documentário dirigido pela cineasta e pesquisadora Aída Marques, a partir de estudos do fotógrafo e antropólogo Milton Guran, autor de livro homônimo do filme publicado nos anos 2000. Em 2023, o longa-metragem foi exibido no IV Festival Cinema Negro em Ação, no Rio Grande do Sul, e, em 2024, na Estação NET Botafogo, no Rio de Janeiro, como parte da programação da Ocupação Aída Marques.
O questionamento exposto acima e a atuação acadêmica da diretora e do pesquisador evidenciam o eixo estruturante do filme e seu ponto de interesse para a CineOP: a investigação sobre como as atuais paisagens urbanas e relações sociais e culturais no Benin se inscrevem na história do Brasil (e vice-versa), sobretudo em relação ao tráfico de escravizados de lá para cá e ao retorno de ex-escravizados de cá para lá.
O interesse principal é pela história do grupo social composto pelos agudás, africanos descendentes de brasileiros da Bahia, ou, segundo Guran em entrevista presente no filme, descendentes dos antigos responsáveis pelo tráfico negreiro em África e dos escravizados que viveram na Bahia e retornaram para o continente africano no século XIX. O grupo teve prestígio social e econômico em países como Benin, Togo e Nigéria. É completado pelos descendentes daqueles que foram escravizados pelos retornados e pelos traficantes.
Conhecida e comentada com pouca frequência por aqui, a temática dos agudás foi tratada raras vezes no cinema brasileiro, como no curta-metragem Agudás (Luiza Fernandes e Renata Amaral, 2023) e no longa documental Pedra da Memória (Renata Amaral, 2011). Agudás – Os Brasileiros do Benin soma-se, então, a um conteúdo cinematográfico excepcional, compilando depoimentos de agudás contemporâneos que contam e reelaboram a história de sua ascendência. A memória humana interessa e é entendida como arquivo vivo.
Entre os entrevistados, estão escritores, artistas visuais, pesquisadores e historiadores. Suas falas são mescladas com cenas de performances teatrais e imagens de caráter antropológico que mostram a influência brasileira no Benin (na culinária, na musicalidade, na arquitetura urbana).
O encontro com pesquisadores beninenses evidencia que a história dos agudás remonta às narrativas sobre o tráfico negreiro regido pelo Reino de Daomé (1600-1904) – atual Benin, episódio que recentemente chegou a ganhar os holofotes de Hollywood ao ser retratado no longa-metragem ficcional A Mulher Rei (Gina Prince-Bythewood, 2022), produzido e protagonizado por Viola Davis.
Ao trazer dramaturgia, literatura ficcional e suas leituras dramáticas para as cenas, o filme proporciona momentos metalinguísticos, sugerindo a compreensão da história como construto narrativo e proporcionando contato orgânico com as estéticas das artes cênicas e das mise en-scènes africanas.
Cleber Eduardo
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