O FUTURO DA PRESERVAÇÃO AUDIOVISUAL COMEÇA NO PRESENTE
“Quando o futuro parece incerto, há um recurso de que se pode lançar mão para torná-lo mais palpável: olhar para o presente em perspectiva crítica, de modo a desvendar suas estruturas e vislumbrar o rumo presumível das transformações.”
Daniela Ghezzi (2022)
Falar sobre patrimônio é, como sabemos, uma ação do presente voltada para o passado. É no hoje, no momento presente, que reafirmamos, reformulamos e redefinimos o que é ou não patrimônio, indicando caminhos para os objetos, bens, documentos e tradições que desejamos que sejam preservados e valorizados e que no futuro sigam sendo compreendidos enquanto parte do patrimônio cultural. Ou seja, construímos no presente (não sem luta ou disputa) nossos pontos de ligação com aqueles que nos precederam, com as culturas e sociedades do passado. Nesse sentido, observar ao nosso redor, estar atento ao que está acontecendo no mundo é uma ação fundamental para compreendermos os futuros possíveis do patrimônio audiovisual. Evidentemente, escolhas e recortes são feitos nesse processo de abordagem do tempo presente. Com que chave buscamos olhar o passado? Quais recortes, temas ou aspectos devemos nos debruçar e privilegiar? Que elementos e discussões do mundo contemporâneo têm nos instigado e revelado desafios, aspirações e problemas? Qual será o patrimônio audiovisual que vamos legar para as futuras gerações (e em quais condições)?
O futuro da preservação audiovisual é, assim, um tema do tempo presente carregado de elementos vindos do passado. Como em qualquer desafio, temos de compreender as questões desde as suas origens aos seus desdobramentos, incluindo as interdependências envolvidas no trabalho de preservação audiovisual em cada época. Isto inclui identificar os desafios atuais e imaginar potenciais ameaças e soluções futuras.
Entre as diversas possibilidades que estão em pauta nesta edição da CineOP, vamos adentrar pela porta da tecnologia, em particular pelo impacto (revolução?) acarretado pela ampliação exponencial da presença nos mais diferentes campos da sociedade, das tecnologias de Inteligência Artificial (IA) em sua etapa generativa. A problemática das transformações do digital e da IA é tema central da contemporaneidade, com implicações geopolíticas, econômicas, jurídicas, nos debates sobre democracia etc., com desdobramentos profundos, inclusive nas questões ambientais e climáticas. A área da preservação audiovisual é, evidentemente, afetada de forma profunda por todas essas mudanças em cada uma dessas áreas. Esses novos elementos se somam aos enormes desafios ainda não solucionados da implementação das tecnologias digitais ao longo das últimas décadas (digitalização em grande escala, armazenamento digital, migração de conteúdos, obsolescência de mídias e equipamentos etc.).
Dados da Fiat/Ifta (Federação Internacional de Arquivos de TV)[1] mostram que grande parte das emissoras de TV ao redor do mundo utilizam algum tipo de inteligência artificial generativa em seus trabalhos cotidianos, como exemplo, a geração automática de legendas e de metadados, a integração com fontes de informações externas para facilitar a exploração de suas coleções e a colorização automática. A restauração de filmes também já faz uso dessa tecnologia, em algum nível, como para realizar upscaling(reescalonamento de um formato de menor qualidade para um de maior qualidade), no trabalho de colorização, na limpeza de manchas, riscos e pontos na imagem, limpeza e redução de ruídos no áudio, a também na (polêmica) reconstituição de imagens em frames/quadros faltantes em determinada obra. No Brasil, em que estágio estamos? Qual o estado atual das discussões sobre o tema? O que vem sendo feito, ainda que em inicialmente ou em fase de testes?
Durante a pandemia do coronavírus, por conta da necessidade de disponibilizar rapidamente conteúdos digitalizados em plataformas para apreciação doméstica, houve uma retomada das discussões sobre a digitalização de acervos e dos debates sobre as prioridades do que e em qual qualidade esse processo deveria ser conduzido. Um ponto que ficou mais uma vez evidente nesse momento foi o grande passivo que existe na oferta de obras e conteúdos do passado em condições de serem apresentadas nas exigências das novas tecnologias e que as dificuldades para suprir esse problema estão se acumulando. Segundo Ray Edmondson (2017)[2], o “abismo digital” que separa os “países desenvolvidos” dos “países em desenvolvimento” não é só uma questão de economia; é uma confluência de políticas, educação, jurisprudência, contextos e perspectivas. Nas últimas duas décadas, enquanto os países do chamado norte global avançavam nas políticas de digitalização e preservação digital ou já estavam finalizando seus grandes projetos de digitalização acervos – Images for the Future (Holanda), Film for Ever (Reino Unido), Grand Emprunt (França), apenas para citar alguns – o Brasil viveu períodos de quase estagnação do setor como um todo. Infelizmente não fechamos a conta da digitalização e não devemos fechar a médio prazo. Porém novas e urgentes discussões se colocam: a AI e suas possibilidades e desafios é uma delas, talvez a mais importante desde o advento das tecnologias digitais.
Como exemplo, a RTVE (televisão pública espanhola), após três anos de pesquisas e desenvolvimento, conseguiu chegar a uma ferramenta que possibilitou catalogar cerca de 11 mil horas de vídeos através de inteligência artificial, com reconhecimento de rostos, padrões, objetos, temas e o já famoso machine learning. Porém, como utilizar essas ferramentas de catalogação de acervos por meio de inteligência artificial no Brasil, se grande parte dos acervos não estão sequer catalogados ou digitalizados? É um dilema que propomos pautar, a partir da compreensão dessas novas possibilidades e desses novos desafios, mas que, evidentemente, não tem pretensão de esgotar em uma edição da CineOP. Ao contrário, trata-se de um tema que precisa ser acompanhado.
Neste sentido, a Temática Preservação da 19ª CineOP propõe olharmos juntos para o momento atual para tentarmos vislumbrar um futuro do setor frente à implementação dessas novas tecnologias. Para tanto, o Encontro de Arquivos deste ano traz duas mesas que buscam se debruçar sobre a temática da inteligência artificial, abordando por um lado os conceitos dessa revolução para o campo do audiovisual e da preservação em particular e, por outro lado, os desafios técnicos, dilemas éticos e problemas de direitos autorais que estão surgindo nesse contexto. Além disso, se propõe a introduzir o importante e amplo debate sobre o futuro da preservação audiovisual, com uma mesa que traz vozes diversas para pensar a questão. Entendemos que os impactos do desenvolvimento e expansão vertiginosa a que estamos assistindo, das diferentes inteligências artificiais em nossos cotidianos domésticos e profissionais, ainda vão se desdobrar e aprofundar em muitas questões. Acompanhar e refletir desde já sobre o tema é crucial para que possamos amadurecer e assimilar essas transformações de forma crítica e propositiva.
A ampliação e desenvolvimento das redes de arquivos e associações é um dos pontos fundamentais para uma perspectiva de futuro da área. Novas associações e redes têm sido criadas com esse objetivo. Quais são estas redes e suas propostas de trabalho? Como potencializar as trocas teóricas e técnicas entre as instituições? Duas mesas trazem essas discussões, por diferentes vieses, a primeira com a presença de representantes de redes colaborativas no campo do patrimônio cultural, a segunda com profissionais de instituições de diferentes regiões do Brasil que estão equipadas para realizar digitalização de material fotoquímico. Ainda nesse âmbito, o Ministério da Cultura, por intermédio da Secretaria do Audiovisual, vai apresentar as recomendações do Grupo de Trabalho Interinstitucional (Portaria MinC nº 98/2023) que tratou acerca das políticas públicas para patrimonialização de bens culturais audiovisuais e para a preservação do audiovisual brasileiro, a estrutura de governança da Rede Nacional de Arquivos e Acervos Audiovisuais e os documentos técnicos de referência para gestão de acervos públicos.
Entre questões técnicas, teóricas e de políticas para a preservação audiovisual, que se costuram nos debates do Encontro Nacional de Arquivos, nos debruçamos também sobre a pauta da regulamentação do VoD (PL nº 2.331/2022), ora em tramitação no Congresso Nacional e com redação já aprovada pela Comissão de Assuntos Econômicos do Senado Federal. Com um texto que propõe uma regulação desenhada a partir de demandas de empresas globais em detrimento dos interesses do cinema, do audiovisual e da cultura brasileira, é um assunto quente que nos lembra, mais uma vez, que o futuro começa agora e que, para garantirmos tanto um canal para difusão de cinema de patrimônio (preservados, restaurados, digitalizados em boa qualidade), ou uma possibilidade de, de fato, incluir a preservação na cadeia da indústria audiovisual, entre outras demandas do setor, temos que agir já.
Em 2024 a CineOP sedia mais uma vez a Assembleia Geral anual da ABPA (Associação Brasileira de Preservação Digital), que contará com o processo eleitoral para escolha da diretoria para o próximo biênio. Em parceria com a associação, realizamos mais uma vez os Diálogos da ABPA, desta vez sobre os repositórios digitais como forma de preservação e de acesso de acervos analógicos ou nato-digitais, com destaque para programas livres com a possibilidade de participação comunitária, como o Tainacan, desenvolvido por universidades brasileiras com o Instituto Brasileiro de Museus (Ibram). A própria associação tem feito uso do Tainacan para o desenvolvimento de seus trabalhos, com ênfase no repositório colaborativo de referências bibliográficas de preservação audiovisual.
Dando continuidade à programação, os estudos de caso relacionados ao patrimônio audiovisual refletem a diversidade dos trabalhos que têm sido desenvolvidos no Brasil. Uma amostragem pequena, porém bastante rica, que conta com uma homenagem ao centenário do diretor, produtor e distribuidor de cinema Mario Civelli, cuja preservação da obra tem sido capitaneada pelo trabalho da Memória Civelli, que vai apresentar suas ações, ao lado dos profissionais atuantes da digitalização e restauração do acervo Civelli. Na mesma mesa, na sequência, será apresentado o projeto Fragmentos, da Globoplay, voltado à memória da teledramaturgia, com a recuperação e exibição de telenovelas das décadas 1970 e 80, cujas tramas contam com apenas dois a 20 episódios completos, seja por questões relacionadas à preservação de seu suporte ou a políticas de acervo, que foram sendo modificadas e desenvolvidas ao longo dos anos.
A segunda mesa apresenta os recentes trabalhos para preservação e acesso dos nitratos da Cinemateca Brasileira, que permitiu, no âmbito do projeto Viva Cinemateca, a realização de um conjunto de ações com vistas ao completo tratamento técnico da coleção de filmes em nitrato de celulose da instituição – a mais antiga e mais frágil, responsável por quatro incêndios (1957, 1969, 1982, 2016) ao longo da sua trajetória. São obras de curta, média e longa-metragem – cinejornais, documentários, ficção, filmes domésticos e publicidade, produzidos entre as décadas de 1910 e 1950; e confiadas por realizadores e instituições de todo o país à Cinemateca Brasileira para fins de preservação. Fechando os estudos de caso, um projeto voltado para o patrimônio audiovisual de forma mais ampla: o projeto Minas é Cinema vem apresentar seus trabalhos voltados para o mapeamento da atividade cinematográfica no estado de Minas Gerais, no que diz respeito à produção, exibição, distribuição de filmes, recepção, produção crítica e publicações sobre cinema, com levantamento de informações e sistematização em banco de dados. Trata-se de um projeto permanente e de enorme relevância, que pela sua amplitude vem sendo realizado por etapas, servindo de ponto de partida e referência para novas pesquisas voltadas à atividade cinematográfica e audiovisual no país.
Além de olharmos para as ações brasileiras relacionadas à preservação audiovisual, a Temática Preservação convida a Cineteca Nacional do Chile para compartilhar seus trabalhos voltados à preservação digital. Criada em 2006, a Cineteca é uma das mais recentes e ativas cinematecas da América Latina. Membro da Fiaf (Fédération Internationale des Archives du Film) e da Claim (Coordinadora Latinoamericana de Archivos de Imagen en Movimiento), compõe o complexo Centro Cultural Palacio La Moneda. Em quase duas décadas de atividade, tem atuado de forma sistemática em prol da conservação e da valorização do patrimônio audiovisual chileno, com ênfase na formação e na preservação digital. Desde então se tornou um modelo para o setor e uma referência para a região.
Para completar a programação, a Mostra Preservação da 19ª CineOP apresenta três programas relacionados aos temas abordados no Encontro de Arquivos. A curadoria celebra o centenário de Mario Civelli (1923-1993), com exibição da cópia digitalizada de Uma Vida para Dois, de 1953, traz outras obras recentemente digitalizadas e restauradas, de diferentes épocas e formatos, e um episódio de telenovela, com objetivo de dar visibilidade ao menos uma pequena amostra da diversidade de projetos relacionados à preservação audiovisual ora em curso no país. Além disso, apresenta uma pequena seleção de obras do acervo da Cineteca Nacional do Chile, instituição que, apesar de ter menos de 20 anos de existência, é uma referência para cinematecas e arquivos audiovisuais latino-americanos, em especial por seu trabalho de digitalização, restauração e acesso do patrimônio audiovisual chileno.
Esses são os caminhos que vamos percorrer nessa imersão no tema da preservação audiovisual, em toda sua cadeia, que a temática preservação propõe.
Enquanto preparamos a programação do Encontro Nacional de Arquivos e finalizamos este texto, acompanhamos consternados as consequências da maior enchente do Rio Grande do Sul em décadas. Para além das vidas perdidas e da destruição causada, assistimos ao enorme desafio que está sendo enfrentado pelos profissionais de patrimônio, arquivos e cinematecas e o poder público, frente à possibilidade de perda de grande parte do patrimônio cultural e histórico do estado. Ações de contingência foram e estão ainda sendo organizadas, para unir forças, tentar salvar o que ainda for possível e para quantificar as perdas dos arquivos. Estudiosos apontam que ameaças como essas, ligadas a emergências climáticas, se tornarão mais frequentes nos próximos anos. Não estávamos preparados para a gravidade do que ocorreu no Sul. Estaremos preparados para esse novo presente? A emergência climática precisa ser enfrentada também a partir das cinematecas e arquivos audiovisuais, seja em mudanças, mas também pensando na importância das redes e das políticas públicas para o setor. Manifestamos nossa solidariedade a todos os afetados por essa tragédia, em particular nossos colegas preservadores e gestores do patrimônio audiovisual do Rio Grande do Sul.
A força da preservação audiovisual só pode vir da solidariedade, da troca e compromisso entre os diferentes agentes responsáveis: dos técnicos aos gestores, dos municípios ao Governo Federal, do público e do privado. Desejamos que o Encontro Nacional de Arquivos Audiovisuais seja um momento de renovação dessas possibilidades para que sigamos essa caminhada pela proteção e valorização do patrimônio audiovisual brasileiro em toda a sua diversidade e complexidade.
[1] FIAT/IFTA. AI Survey. The results are now available. Disponível em: https://fiatifta.org/ai-survey-results. 2023.
[2] EDMONSON, Ray. Arquivística audiovisual: filosofia e princípios. Trad. Carlos Roberto Rodrigues de Souza. Brasília: Unesco, 2017.
José Quental
Vivian Malusá
Curadores | Temática Preservação
19º ENCONTRO NACIONAL DE ARQUIVOS E ACERVOS AUDIOVISUAIS BRASILEIROS
Debates
Cases
Diálogos da Preservação
Masterclass Internacional
MOSTRA PRESERVAÇÃO
CINETECA NACIONAL DO CHILE – PÉROLAS DA COLEÇÃO
A instituição convidada para apresentar seus trabalhos na 19a.CineOP é uma das cinematecas nacionais mais recentes do mundo (2006), mas sua idade é inversamente proporcional à importância dos trabalhos e de seu legado. Além do fundamental trabalho de conservação de filmes, documentos conexos, catalogação, restauração, e das salas de cinema, nos seus quase 20 anos de existência tem feito um trabalho primoroso e amplo de digitalização de seus acervos, com a proposta de deixar este patrimônio audiovisual para livre acesso através de sua plataforma online. Em diálogo com a temática histórica desta edição, o programa apresenta quatro animações, duas históricas e duas mais recentes, estas dirigidas pelo realizador chileno Tomás Wells, um dos grandes nomes da animação chilena.
CENTENÁRIO MÁRIO CIVELLI
Mario Civelli (1923-1993) foi um dos grandes nomes do cinema no Brasil. Nascido na Itália, atuou como produtor, diretor e distribuidor no Brasil com contribuições incontornáveis para a história do cinema brasileiro. Celebrar seu centenário é também sublinhar o fundamental trabalho que vem sendo desenvolvido pela Memória Civelli em preservar e restaurar o trabalho deste personagem.
UM OLHAR PARA A DIVERSIDADE DA RESTAURAÇÃO NO BRASIL
Com objetivo de apresentar um pequeno recorte da diversidade de projetos recentes relacionados à preservação audiovisual no Brasil, o terceiro e último programa é composto por dois curtas-metragens documentais e um episódio de telenovela. Esta seleção traz um dado importante dos trabalhos de restauração recentes, que é uma maior descentralização geográfica de projetos, que pode estar relacionado a uma ampliação no número de instituições que estão equipadas e aptas para realizarem a digitalização do suporte fotoquímico e posterior restauração – um tema que mereceria uma análise com viés de pesquisa acadêmica. O programa traz também a diversidade de atores que protagonizam essas ações, com a apresentação, pela primeira vez na CineOP, de teledramaturgia – que nos últimos anos tem sido pauta para preservação e restauração por parte das TVs, como um de seus ativos valiosos.